Rewind

domingo, 27 de janeiro de 2019

Padrinho,

Há pessoas que são os esteios da nossa vida, verdadeiras traves mestras do edifício em que nos tornamos. 

Crescer foi, afinal de contas, poder sempre vê-las, foi sempre receber delas uma espécie de certeza de ferro de que não nos faltariam nunca. 

O Padrinho foi tudo isso - a pessoa que melhor conheceu o meu Pai, a pessoa que melhor lhe fez, a pessoa a quem, no fim de tudo, nós todos mais devemos. 

Cá por casa, sempre ouvimos o seu nome como o de mais um membro da família. O Zé que, em menino, fugia para almoçar ou jantar com o meu Pai; que andou no colo da minha Avó e do meu Avô como mais um filho. 

Diz-me a minha Avó, 

Foi no meu colo que o Sr. Francisco deixou o Zé no dia em que, de repente, se sentiu mal, 

Em jeito de brincadeira, disse sempre à minha Avó, 

Vovó, os Costa Leite são Mesquitas honorários

E, para o Pai, o Padrinho foi melhor do que qualquer irmão dele - sempre que o Pai estava consigo, eu sabia que ele estaria bem, que ouviria palavras de infinita bondade, que haveria sempre um abraço, perdão para todos os erros, genuína vontade de partilhar o mistério desta viagem que foi a vossa. 

Hoje, o mundo ficou diferente - partiu um dos nossos. E isso, para mim, é como ter que me despedir da paisagem que sempre se viu do meu coração. 

Toda a vida, eu e o meu irmão dissemos, 

Quando formos grandes, queremos um melhor amigo como o do Papá

Hoje, sei que não há muitos encontros desses; que recebemos a dádiva da sua amizade muito para lá do que seria imaginável, que sempre fomos protegidos por um coração enorme que nunca se esqueceu de nós. 

Por tudo isso, a minha vénia. Por tudo isso, muito obrigado. 

E a nossa Fernanda - uma mulher com um sentido de missão em tudo na vida, dona de um sorriso doce e meigo e parte, bem o sei, da felicidade que foi tudo o que vivemos. 

Acho sempre que a saudade é a folha perene de que é feita a árvore da gratidão. 

Vou ter saudades suas o resto da minha vida pelo tanto que tenho que lhe agradecer. 

Lembro-me de dizer aos meus Avós, 

O Zé até parece vosso filho, 

O mesmo cabelo loiro, os olhos azuis e, sobretudo, muita coisa que nos uniu para lá do sangue. 

A vida não é um caminho fácil. 

Felizmente, pela minha parte, tenho o coração cheio de motivos para nunca deixar de agradecer. 

Um abraço como aqueles que trocávamos quando, na rua, a vida nos punha no caminho um do outro. 

A imagem eterna do sorriso bondoso que era o seu e um, 

Até já!

Só porque nunca se pode dizer adeus a parte de nós, 
Só porque, no fim de tudo, quem se ama sempre se encontra. 

Obrigado por tudo. 

R. 

RM|XXVII-I-MMXIX

sábado, 19 de janeiro de 2019

18.01| Milinha, meu Amor,

PELOS TEUS 95 ANOS, 

Quis ser o primeiro hoje de manhã.

Tinhas os telefones na sala e, vinte e duas chamadas minhas depois que não ouviste, atendeste, 

Finalmente, Milinha, minha malandra!, disse-te eu a rir, 

Meu amor, como estás? Estava no banho, desculpa

Primeiro que tudo, queria dizer que te amo muito. Já agora, porque parece que fazes anos, muitos parabéns e, claro, estás desculpada! Bonita e bem arranjada sempre, se fazes favor!

Rimo-nos os dois, enquanto a tua voz tremia, quando repeti que te amava, uma vez mais. 

Sempre tive pressa nestas coisas do amor - do chegar a tempo, dizer tudo, ter a certeza absoluta de que sabes que todos os dias te levo comigo para todo o lado. 

Hoje é um dia feliz, pensei. Devo ter andado com um sorriso parvo o tempo todo, o trabalho não me custou nada e senti-me em paz depois de te ter ouvido responder-me, 

Eu também te amo muito

Sabes, Vovó, hoje sei que só consigo amar quem me espanta. Tu, desde sempre, foste um exemplo de como podemos ser afogados inteiros pela admiração que nos causa a inteligência, a bondade, o afecto e o estoicismo de alguém. 

Em criança eu não falava, fazia anúncios.

Aos dez anos, disse, ao almoço, que era fundamental a educação sexual nas escolas. Que não se podia fazer do corpo um tabu; que jovens instruídos e confiantes tomariam, em princípio, melhores decisões. 

Ninguém me excomungou - os meus Pais concordaram, o A. também e os meus Avós sorriram. 

A minha Avó acrescentou, 

Nunca percebi as pessoas que diziam que teriam os filhos que Deus quisesse. Eu, pelo menos, achei sempre que devia ter apenas os filhos que pudesse manter. 

Olhou para mim com um sorriso irónico e, em jeito de confidência, 

Além do mais, filho, espera-se mais das mulheres do que serem somente mulinhas de carga!

Milinha e a defesa do planeamento familiar, pois então. 

Eu, parvinho-da-silva como até hoje, pisquei o olho ao meu Avô e ainda disse, 

Eu acho, aliás, pensando bem, que educação sexual pode ser um contra-senso. Em matéria de alcova, alguma falta de educação pode até ser desculpável, 

Todos se riram - eu achava, sobretudo, admirável o facto de nunca a minha família me ter parecido anacrónica - não se sente, até hoje, que o tempo separe as pessoas. Falamos todos a linguagem do progresso e todos quiseram que ele acontecesse mais cedo. 

Hoje, recordei outra conversa nossa. 

Filho, sabes o que fez o teu bisavô António, um dia? Sentou as filhas à mesa e disse-nos, 

As meninas que sangue têm nas veias? Não é o meu e o da Mãe? Então para quê adoptarem os nomes dos vossos maridos? É desta casa que vocês são - hoje e sempre. Não caiam nesse disparate, isso é um atestado de inferioridade. 

Obviamente, assim fizeram e Mesquitas que eram, Mesquitas foram, até ao fim.  

Um dia, para provocar a Gó, eu disse, 

A minha relação com o vizinho-do-andar-de-cima é estritamente pessoal. Não acho muita graça a padres, se queres saber, 

Como assim, menino?, 

Gó, sou a quinta ou sexta geração de uma família ligada aos negócios. Achas que não percebi a vantagem de eliminar intermediários? Pode ser que consiga negociar a salvação da minha alma de forma mais vantajosa, entendes?, 

[Coitada da Gó, penso eu hoje, certo de que o amor dela por nós é, de facto, imenso.]

Seguiu-se toda uma explicação da minha parte sobre as indulgências - a igreja dela tinha vendido lugares no céu aos ricos para construir a Basílica de São Pedro, em Roma e, também, uma revolta grande minha contra o lugar que os pobres teriam, afinal, no céu num mundo desses. 

E, mais, não acredito na absolvição pela simples confissão. Um erro, basta uma avé Maria ou duas e um Pai Nosso e já está? Não seria melhor aliviar a consciência pedindo perdão a quem se fez mal? Os padres têm, por acaso, uma tabela para indexar isso?,

Ninguém me proibia as questões, ninguém achava o raciocínio estúpido. Ninguém se apressava a abafar a dúvida. 

O meu encontro com a espiritualidade faz-se como todos os abraços da minha vida. Umas vezes, abro eu os braços; outras, sou surpreendido pelo milagre que foi esta família - os Avós, os Pais, o A. e a Gó. 

E faltam-me sempre as palavras para este espanto com que os contemplo, este orgulho sem medida que tenho na liberdade que me foi permitida e que me amarrou a eles para sempre. Amá-los era a única hipótese - eu já era deles, desde o primeiro dia. 

Sabes, Milinha, cheguei à conclusão de que amo muito poucas pessoas, sabes?

Ai é? Não me parece, filho. Tu tens um coração grande, 

Milinha, um coração grande? Isso é uma cardiopatia grave! Tenho um coração justo, acho eu, 

Como assim?, 

Amo incondicionalmente muito poucos e gosto até mais deles do que de mim. Gosto do que sou porque vos tenho, entendes?, 

A minha Avó entende-me, eu sei. 

Lemos bem o silêncio um do outro, trocámos, toda a vida, olhares, toques e cotoveladas debaixo da mesa quando ambos reparávamos em alguma coisa. 

A minha fé está toda nisto. A minha liturgia é a do amor pelos que me amaram e somente por esses. 

À minha Avó, dou o meu coração inteiro como quem lhe devolve a vida que ela ajudou que valesse a pena. 

Obrigado, minha Milinha. 

PARABÉNS! 

O maior dos beijos, 

Do sempre teu, 

R. 


RM|XVIII-I-MMXIX