A Mãe lê como quem repete um hábito antigo - abre o coração como a umas portadas de madeira para que entre a luz, se sinta o mundo, se cheire e ouça a vida - para que se veja através de outros olhos, se ouça a verdade no timbre de outras inúmeras vozes que não somente as nossas.
Gostei sempre disso na Mãe - o gosto que guarda por cada livro, as lembranças e as marcas dos personagens de quem fala como se os tivesse recebido para jantar, lhes tivesse conhecido os segredos mais íntimos, as esquinas mais afiadas ou os sorrisos mais iluminados.
E sempre, em todos eles, a sua assinatura e a data em que os leu. De certo modo, os livros da Mãe são uma outra biografia que posso traçar dela - quem conheceu e quando, onde estava quando se deram todos esses encontros e, mais do que tudo, pelos sublinhados e notas suas nas páginas, posso ouvir o que disse, então, o seu coração.
O papel dos livros cá de casa tem a minha Mãe dentro - o cheiro do perfume que usava, vestígios de uma caligrafia que aprendi a reconhecer de imediato, dobras e sulcos nas capas que mostram os quilómetros das viagens que fizeram - eles sempre ao seu lado ou dentro de uma das suas inúmeras carteiras onde, sem que perceba bem, pode, afinal, caber o mundo inteiro.
Há livros da Mãe que eu leio ou levo em viagem para que as saudades doam menos - mesmo longe, descubro que, ela e eu, podíamos ser amigos dos mesmos personagens, recebê-los, sim, para jantar ou ficar a ouvi-los enquanto durem as páginas e as confidências.
Abrir um livro da Mãe é, justamente, abrir uma espécie de baú para o tempo que veio antes de mim - passar nos passeios das mesmas ruas, entrar nas vidas e nas casas dessas pessoas e quase poder dizer,
A minha Mãe esteve por aqui. Lembram-se dela?,
Também eu os assino sempre com a data em que os leio, também eu os sublinho e anoto como se, com os sedimentos do tempo e de ambas as passagens pelos mesmos lugares, se pudesse fixar para sempre um encontro meu com o coração da Mãe.
Guardo os livros da Mãe como partes de um retrato seu que hei de continuar a fazer enquanto durarem as páginas, enquanto puder encontrar dela o perfume doce, a letra desenhada
e o caminho para casa.
RM| XXV|XII|MMXVIII