Minha Gó,
Como te lembrarás, nas coisas do amor, eu tive sempre pressa. Hoje, vendo bem, o amor soou-me sempre à possibilidade de uma chegada ou de um encontro, a uma promessa que se cumpriria, a uma carta que viveria para nos ficar nos bolsos, depois de recebida, a vida inteira.
Contigo, minha malandra, foi sempre assim - estás comigo desde que me lembro, houve, bem o sei, no tamanho generoso dos teus braços, uma casa que me serviu, todas as vezes, no corpo. E, mais do que tudo, também tu me ensinaste o nome do que fica para lá das palavras ou, antes, sempre e sempre, além delas e do tempo.
Fazes 81 anos e, enquanto vi o mar de fotografias em que a corrente da vida seguiu o seu caminho, reparo que nenhuma maré te levou jamais para longe de nós.
Fomos todos tão mais felizes por tua causa, sabes?
Não vai haver nunca ninguém que me chame como tu,
Menino,
Ou que acenda velas porque eu e o A. tínhamos que ter sorte, tudo tinha que se compor, a felicidade tinha mesmo que acontecer.
E nessas velas, digo-te, eu acreditei sempre - nunca deixei de sentir, até hoje, que há luzes que nunca se apagam.
Um dia,
Gó, porque usas tu aliança? Tu não és solteira?
Casaste com Deus, foi?,
Sim. Vê como o menino sabe?,
Até aceito isso, menina! Casa-te com quem quiseres, desde que homem nenhum te leve daqui de casa, está bem?,
Tu rias-te - eu, malandro, respirava de alívio por esse teu marido ausente te deixar andar pela nossa casa sem, aparentemente, se importar muito e isso, para mim, ser da máxima conveniência.
Hoje e, porque sei que talvez a ideia de casais a morarem em casas separadas fosse demasiado moderna para ti, percebo que Deus tenha morado sempre connosco na dádiva que foste para nós e em todo o bem que nos fizeste.
Eu exclamava da mesa,
Na minha casa, Gózinha, também não hei de impor sacramentos, sabes?,
"Estapor-de-moço-dum-raio", que eu era,
Quando morrer vou para o limbo, é, por não ser baptizado? Isso parece-me bem melhor do que ir para o meio de pessoas com asas e túnicas brancas ou para o inferno que não tem ar condicionado. E, sabes que mais, se eu for para o limbo, nunca mais nos encontramos, percebes? Tu vais de certeza para o Céu!,
Lembro-me de, ao dizer isto, o coração me doer fundo. A ideia de nunca mais nos vermos atingiu-me como um raio. E disse,
Tu vais lá buscar-me, não vais, Gó? Deus tem-te em boa conta e sabe que vou precisar sempre de ti!,
E é isto - o amor como a promessa de um encontro, a vinda de alguém que nos resgata, que nos liberta, que nos alivia o coração.
Um dia, vislumbrei em ti uma futura causídica digna de nota,
Sr. Mesquita, nas coisas do amor ninguém manda! Eu gosto destes dois meninos mais do que tudo na vida! Para mim, ninguém se compara a eles,
O meu Avô sorriu, acenou como quem concordava e, nesse dia, eu e o A. fundámos o clube-de-fãs-da-Gó-que-adora-os-gémeos-mais-do-que-ninguém-que-por-acaso-e-só-mesmo-por-acaso-são-eles-próprios.
Que bom que, às crianças, ninguém exige coerência.
O mais engraçado de tudo - ainda hoje, o clube está de saúde e, já agora, que nenhuma alminha peça, alguma vez, ao amor que seja coerente.
Amor e coerência são um oxímoro, diz aqui o génio.
Nunca quiseste comer connosco nas mesas das salas grandes. Ficavas sempre pela mesa da cozinha, apesar da insistência.
Um dia em que estávamos só eu e tu,
Ai é, não comes comigo na mesa da sala? Então espera lá que já vais ver. Vou eu ter contigo! Tu és católica, mas quando a montanha não vai a Maomé, filhinha, Maomé tem que ir à montanha!,
E jantei contigo na cozinha com a felicidade imensa de estarmos juntos e isso me chegar.
Vou amar-te enquanto viver - também eu aprendi que, para os que amo, nunca há um limbo. Só pode haver uma vida que os salve sempre, os encontre sempre, os eternize meus.
Oh Gó, sabes o que sou? Sou a criança mais feliz da rotunda!,
Há felicidade na Praça da República ou noutro lugar qualquer.
Basta que o meu coração receba uma carta que diga,
Menino,
que ninguém lhe ponha uma data
e a luz, nunca, nunca se apague.
Um beijo do teu,
R.
RM| II-III-MMXIX
Sem comentários:
Enviar um comentário