O Amor é tema que nunca se esgota. Talvez porque sem sabermos muito bem porquê somos todos atingidos por essa enorme vontade de andarmos nuns pés que não são os nossos.
O Amor está a mudar, meus senhores. O Amor dos dias de hoje é um amor streetwear.
Há uns dias passava eu numa dessas ruas perdidas no corpo da cidade, como uma dessas linhas que sempre descobrimos na palma de uma mão e eis que sou surpreendido por uma profunda declaração de amor: "Amuh-te Soraia." Confesso que fiquei a pensar naquilo de o amor ser aquilo: amor com letra grande ou letras grandes que talvez seja a mesma coisa (ou não.)
Estas letras garrafais ocupavam a face enegrecida de um desses prédios que deitam os olhos para as ruas cansadas da nossa cidade. E passam os dias e as palavras jazem ali como redutos invioláveis daquilo que fomos. E eis que as fachadas da nossa urbe se tornam repositórios da memória individual - essa que em tempos idos se não partilhava e ficava a amarelecer numa caixa escondida do mundo e dos seus revezes.
O Amor é um lugar estranho. E talvez, nos dias de hoje, os amores contrariados sejam mais explícitos - sem aquela dose de contenção que era hábito em tempos idos. Hoje o pai daquela menina muito amada chamada Soraia tem o amor estampado no prédio da frente, como um manifesto assumido e provocador. E talvez hoje os amantes não fujam mas simplesmente imponham o seu amor dentro de casa.
A verdade é que talvez Julieta e Romeu hoje se despedissem do mundo com Prozac e tivessem tido um filho que lhes era retirado para um refúgio longínquo perto do mar. E talvez nem se chegassem mesmo a matar. Talvez fossem para a televisão gritar que o filho era deles e, depois de uma quantas lágrimas, tudo ficasse bem. Uns anos depois o caso haveria de ser conhecido como o drama do "Menino da Lágrima" que é um nome que a gente não esquece e que cai bem melhor no estômago da memória do que Romeu e Juieta. O bom disto tudo é que talvez se tenham evitado umas quantas mortes.
Mas o amor continua o seu desfile pelas ruas. Hoje o amor cola-se na pele. Respira em cada um dos nossos poros. O amor hoje tatua-se. Bem, talvez seja melhor dizer que o amor não respira em cada um dos nossos poros.
É ver o amor estampado nos corpos. Chamas tatuadas perto do nome daquele ou daquela que juramos amar. Talvez esta seja a nova forma de compromisso. Depois de todas as palavras gastas e prostituídas e os gestos todos aprendidos em filmes de grande distribuição, o que resta ao amor é o palco dos nossos corpos.
Um dia, Soraia acordou com vontade de novos amores. Desatou num discussão violenta (virulenta não que "Sidas" ela não tem, Graças a Deus.) com o galã da pintura urbana. Ele chamou-lhe "Cobra!" e outros elogios igualmente intensos. E o amor acabou. Soraia estava, enfim, livre para o deleite de outras paixões. Havia, contudo, um senão: apesar de ser cobra não podia mudar de pele e deixar para trás o esqueleto daquelas palavras, agora vazias. (apesar de ainda terem muita carne (a dela)).
Hoje o laser é o melhor amigos destes amores eternos. Chega e apaga as nossas promessas. E os amantes sentem-se livres para começar de novo outro amor que "seja eterno enquanto dure", como diz um tal de Vinicius cuja sinceridade bateu o lirismo desse tal de Guilherme Shakespeare.
O Amor muda, meus senhores. E talvez não se ame menos, mas simplesmente de forma diferente.
Pego num livro de sempre. Pensei em escrever estas palavras:
"Amor é fogo que arde sem se ver;
Ferida que dói e não se sente"
Mas lembrei-me que o poeta desconhece que há chamas que ardem nas costas e nos braços e no corpo de quase todos os amantes do agora e que, depois, de tatuado, a ferida desse amor dói e vê-se bem.