Rewind

sexta-feira, 17 de julho de 2009

No jardim

Encontrei-te num banco pintado de luz no jardim pequeno do fim da minha rua. Em baixo, o mar com o seu eco rouco de notas arrastadas pelo vento.
Estavas sentado muito quieto - os ombros murchos, com os músculos lassos. Aos teus pés um rafeiro pequeno com o pêlo num emaranhado amarelo de nós e frisados. O cão tinha um olhar dolente, certamente saboreando o calor dessa tarde de horas dilatadas.
Procurei os teus olhos, sem que me visses. O teu olhar era um olhar aceso - desses que se enamoram do mundo e com ele vivem um amor sentido. Tinhas a pele num desalinho de curvas e pequenas covas. O cabelo grisalho, pequeno, semeado numa cabeça bem redonda. Seguravas na mão um livro a que não pude adivinhar a trama. Tinhas as mãos pousadas no colo e aí repousava o livro entreaberto.
Não foste tu quem me despertou a atenção. Foi o teu livro a que não pude saber o nome. Procurei-o, então, nos teus olhos por ser neles que sempre se adivinha o brilho que as palavras acendem.
Chamei-te velho. Ou chama-te velho o nome que o mundo me ensinou a dar-te. Eu preferia não te chamar nada. Nos teus olhos vi uma vontade que o teu corpo não consente. Vi desejos que o teu corpo não cumpre mas que a tua fome não esquece. E continuaria a não te chamar nada.
O nome que te demos não é o que tu és. E fiquei a pensar nisso de os nomes não serem uma boa pele para as coisas. Ou serem talvez só isso: pele morta a que falta o sangue e o sonho nas veias.
O rafeiro mudou de posição e foi pousar o focinho no teu pé direito. Trocaram olhares e podia jurar que nos olhos do bicho se desenhou essa alegria sem fundo que o amor incondicional desperta e que a palavra rafeiro não diz.
Os livros ensinaram-te o verdadeiro nome das coisas. Talvez tu e o rafeiro de olhar tenro soubessem disso: os dois, assim, sendo muito mais do que aquilo que o nome que têm diz de vós.
Por isso, procuraste sempre os livros: neles as palavras tinham o oxigénio do sonho; a escala desmedida do que não se pode pedir e não tem nome. Porque as coisas ficam bem melhores assim: sendo apenas uma infinita possibilidade como essa que tu eras.
A vontade e o sonho acima da tua pele.
Viva, sob a luz do sol que se punha.

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