Rewind

sábado, 15 de maio de 2010

o ano de 1993_saramago.*

Reencontrar Saramago nas dobras dos dias -nesse espaço sem tempo, é sempre um prazer. Há escritores que nos fazem falta, cujas palavras bebemos com a sede da saudade que parece, de repente, mais funda e urgente. Este livro foi uma pausa - uma leitura acto contínuo. Até ao fim. Ou até à próxima. Para breve, espera-se.

Escrita um ano depois de Abril, Saramago esboça nesta obra uma crónica em tom profético. Cedo se percebe que tudo o que caracteriza a sua voz está ali: o tom moralizante embuído dessa sempre ironia fina como um jogo de luz e sombra: como se do contraste a verdade resultasse mais nítida. Encontramos um Saramago poético - um texto com um corpo surpreendente, por cujas curvas a atenção desliza numa confusão de sentimentos e sentidos. Num balanço tortuoso as suas palavras são agudas e claras como luz.


Saímos desta obra convencidos de que talvez houvesse medo de que os mesmos erros voltassem. Vemos que a profecia e as criaturas de ficção científica são nomes e faces de uma mesma coisa. São metáforas, são imagens fortes para o mesmo. São a defesa disso que na altura desta obra era ainda uma conquista recente.


Saramago como paladino da liberdade; como a voz que ilumina os meandros da humanidade: o discurso como uma linha que cose a carne e o espírito para o ver como um só. Isso que o torna justamente tão único e imprescindível.


Acaba-se a obra e repara-se que o mais maravilhoso é o que em nós começa depois dela terminar. Como sempre.




"O interrogatório do homem que saiu de casa depois da hora de recolher começou há quinze dias e ainda não acabou / Os inquiridores fazem uma pergunta em cada sessenta minutos vinte e quatro por dia e exigem cinquenta e nove respostas diferentes para cada uma / É um método novo / Acreditam que é impossível não estar a resposta verdadeira entre as cinquenta e nove que foram dadas / E contam com a perspicácia do ordenador para descobrir qual delas seja e a sua ligação com as outras / (...) / O homem que saiu de casa depois da hora de recolher não dirá porque saiu / E os inquiridores não sabem que a verdade está na sexagésima resposta / Entretanto a tortura continua até que o médico declare / Não vale a pena."


*com uns belos desenhos de Rogério Ribeiro.

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