Rewind

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

10.11.

Os livros, o mar, a música.
Há linhas nessas páginas amarelas dos passos do tempo que me denunciam onde se prendeu a tua atenção - páro, leio e descubro que nos encontramos nessa coincidência; que há um espaço onde me encontro contigo, em que me descubro, afinal, revelado nas mesmas linhas que leste há anos - antes de mim, das minhas mãos, da minha pele nascer da tua.
Descubro-te, sempre igual, através do eco do tempo - muitas linhas depois, todas as linhas depois e continuas uma heroína que livro nenhum conseguiu guardar.
Os livros guardam o teu cheiro como as divisões lá de casa, depois de ti. Dizem que voltas, que voltas sempre para te poder ouvir, ao longe, e gostar de saber-te lá.
Todos os livros, todas as palavras e descobri que nada me chega para te dizer - que há um espaço maior do que as linhas e os corpos que as leêm - e esse espaço é o nosso.
Os livros que foste trazendo para dentro das tardes de sol no Verão - o jardim sereno e cúmplice dessas confidências que as palavras te punham no sangue depois de lhes provares o sumo.
Procuro-te nos livros que leste como moradas que tiveste no caminho - sinto-te no eco das palavras que são como passos que deste para longe ou em direcção a ti mesma.
As lombadas suaves e polidas lembram-me o toque da tua mão, enquanto crescia e te contava, nessas horas de conversas longas no colo da areia, as linhas que fizeste ser possível escrever na minha vida.
Os livros e a curiosidade de te descobrir mais - apurar o traço do retrato inacabado que tenho de ti como, de resto, são os maiores amores. O prazer de iniciar cada capítulo da vida contigo - partir para chegar, sempre. Partir para te levar sempre presa no cimento do chão que piso, na luz de um dia de Outono que me lembra do musgo dos teus olhos.
Partir para te ver melhor - surpreender essas lembranças que se desenrolam como um caminho de ferro cheio de estações, onde desci contigo para aprender a renovar a crença no mundo, a ver a beleza serena do desconhecido, conhecer a surpresa e o abalo do encanto que nos nasce da cumplicidade que sentimos com pessoas e lugares.
As linhas que sublinhaste nas páginas são as coordenadas que sigo para contar a tua história, para confirmar tudo o que sempre me contaste.
Enquanto leio o que foi escrito de ti nas palavras dos outros, conheço a solidez da verdade com que te fizeste minha confidente e me mostraste a verdade sobre ti e o teu amor.
O Verão cheira a mar - os nossos Verões vão cheirar sempre a mar, ao descanso que volta aos corpos estendidos nas toalhas de praia. Fechar os olhos, como em criança, e gostar de ouvir as vozes dos avós e da família ao longe. Estão lá e isso chega.
A praia lembra-me sempre de ti - de como gostavas de nos ver correr na areia e te apaixonavas por essas gargalhadas fundas e livres das crianças felizes que fomos.
Os nossos Verões - dias como promessas à espera de se cumprirem sem nunca falharem - esse tempo inteiro e uno.
Lembro na areia os teus passos - sempre por perto, enquanto o silêncio nos servia e tinha a medida exacta do nosso corpo. Até hoje, as palavras servem para ser o eco de uma música mais funda que fomos compondo ao longo do tempo, os dois.
A música, os acordes que nos acompanham no balanço da viagem.
Ver o teu rosto no vidro do carro - espreitar-te o olhar, aprender o que ele diz, surpreender-te nesse instante e gostar de te ver na minha vida. Há um consolo que nunca veio só da luz que nos envolve o corpo - chama-se paz.
Ser testemunha dessa tua forma de amar - admirá-la, ver como contas as histórias da tua família, do meu pai, dessa vida que abraçaste sempre.
No dia dos teus anos falaste-me dos teus - se celebras a vida, é sempre para os recordar, para repisar a pedra que vos fez companheiros em definitivo.
No dia dos teus anos, escolheste os outros - provas-me que a tua vida são as tuas escolhas e a forma orgulhosa com que renovas a fé que puseste nelas.
Procuras-me os olhos na mesa - espero que se ouça o orgulho, que te devolvam os meus olhos, ao menos, uma parte do que deste.
Celebro-te presa na minha vida porque és o pilar que segura o céu - mostraste-me que a face verdadeira do amor se chama liberdade - que só há liberdade nessa escolha de querermos estar presos no que nos liberta, no que nos amplia e nos emudece.
O silêncio é uma valsa que se dança quando se vê no escuro - contigo, as salas soam ao familiar, ao percorrido, ao conquistado.
E só contigo me serve o silêncio, porque contigo nada me falta.
Em silêncio, desejo-te na minha vida. Baptizo o teu nome com essa admiração que se fez maior com os dias.
Da tua vida, do teu caminho, do teu rosto saiu a massa que te traz dentro e que sou eu. Moras em mim - sou um livro que tem o teu nome sublinhado com caneta permanente, um livro que se lê melhor com o som do mar e que fez do silêncio o altar onde pousa o teu nome que digo sempre sem precisar de o dizer.
Os livros, o mar, a música.
E tu, mãe. Sempre.

Parabéns Mãe.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Você na TV.

Assistir a um programa de televisão dá, hoje em dia, vontade de voltar aos tempinhos do preto e branco simples, com vozes que pareciam envernizadas e pertenciam a esse género de locutores engomadinhos-guardiães-dos-bons costumes.
Começo por reiterar que nada tenho contra a cor que, aliás, existia no mundo muito antes de nos entrar pelos olhos dentro graças à caixinha mágica, hoje, da grossura de uma folha de papel.
O problema reside, justamente, no facto de a televisão actual se poder bem definir como "tebê-chiclete" - abunda toda a vasta gama de cores fluorescentes e apenas essas.
Veja-se e conclua-se, depois, pela justeza ou não da sentença que ditamos.
Tudo começou com essa criatura a que a literatura dos guiões chamou de Floribela - de repente, era super giro tratar de criançinhas, falar com árvores e acreditar que toda a gente aprecia essa modalidade desportiva chamada alpinismo social, desde que devidamente disfarçada, claro.
Que voltem os hippies, a boa música e os tarolos que o mundo sempre tinha outro colorido.
Portugal passou a apreciar esses melodramas plastificados dessas Lolitas pseudo-puras e perseguidas pelos azares da vida e do mundo.
O "amore" passou a levar um "e" no fim e, veja-se, ainda ninguém sonhava com essa evolução-natural-por-decreto do acordo ortográfico. Mas as pessoinhas viviam felizes, atafulhadas com os novos heróis do contemporâneo - a heroicidade dura pouco e as heroínas, coitadinhas, cedo largam os folhos e os pinchos histéricos e vão rápido quitar a prateleira e brincar aos médicos, mas a sério, desta vez.
As heroínas são umas brincalhonas que, ao contrário da Heidi, não pulam, mas cavalgam as montanhas deste mundo. E, talvez, se perceba agora que todos "deêm no cavalo.", pois então, com a Cicciolina a presidir às lides e dar o exemplo (e o resto também.)
Os Marcos de hoje em dia dão pontapés em directo - "falar pela frente" é, literalmente, chapar a verdade nas fronhas das pessoas.
As heroínas podem ser gordas - longe vão os tempos dessas belezas que só a cabeça dos homens pode imaginar existir. Mas, gorda que é gorda para ser famosa, tem de querer deixar de o ser. A isto se chama a auto-estima dos tempos da chiclete: "Aceitamos que sejas o que és, desde queiras deixar de o ser, tass?"
E, ligado o aparelho, podemos ver o desfile triste que é o aproveitamento pela cultura do plástico dos fantasmas que ajuda todos os dias a criar.
Vivemos no tempo em que a hipocrisia é, essa sim, obesa mórbida sem que ninguém se preocupe em mudar o disco e pôr a tocar a banda gástrica.
Depois chegou a casa dos segredos - com ela voltou aos ecrãs essa comadre casamenteira que alertava as pessoas para não se esquecerem da escova dos dentes. Ela, lá por casa, usava o piaçaba que era o mais indicado para pôr a brilhar essa preciosa reserva de marfim.
E está o espectáculo montado - desculpem-me o termo, mas decerto não haverá alminhas preversas que desconfiem da idoneidade do palavreado.
Assistimos a um desfile de um conjunto de criaturas saídas de uma linha de montagem (literalmente) da sociedade do plástico e da chiclete: temos ruído e brilho e o argumento da história mede-se, literalmente pelo tamanho do bícepe e da copa das meninas.
Nada contra pessoas saudáveis, naturalmente. É até giro ver as gordas que sofrem contra as saudáveis que tentam convencer meio mundo que sabem guardar um segredo melhor do que (não) guardaram outras coisas na vida.
E a Ordem dos Médicos agradece encarecidamente a descoberta de novas doenças - uma tal de "apeneira do sono". Isto faz avançar o país, não se duvide. Todos aprendemos com esse circo da estupidez em directo - o circo dessas abéculas, literalmente, mortinhas por armar a tenda.
A Sociedade de Geografia agradece as lições dadas ao "pobão" - os continentes estão, agora, "para cima" ou "para baixo". Percebe-se, de resto, a alusão. O melhor ensino é aquele que adequa as matérias à linguagem dos petizes. E, as meninas sabem que no mundo, às vezes, se fica por cima ou por baixo, que é giro mudar de posição e alargar (literalmente), os horizontes.
A sociedade chiclete está ao rubro na tebê - e a "frase mastiga e deita fora" é o slogan para esses directos a fazerem a apologia da carne mastigada e dos afectos transformados num diário de alcova foleiro e devidamente pago - o taxímetro está a contar, pois então...
Há uma apologia da espiritualidade e, quiçá, do respeito pelas doenças mentais - as pessoas ouvem "a Voz" e cumprem os seus ditames.
É lamentável ao que chegam os apelos que algumas alminhas sentem hoje - vivemos num tempo em que mais depressa se implanta silicone do que uma república ou outra ideia qualquer.
As pessoas alimentam-se da fantasia do proibido vivido pelos outros - é giro descobrir uma freira, uma mulher que dormiu com mil camionistas e uma girafa, um homem que se chama Tatiana quinta e sexta à noite. E as pessoas que assistem agarram-se a isso como à verdade oculta do mundo e da coisas.
É triste assistir às trocas e baldrocas das benfeitoras das manhãs - a Julinha ou o "Megafone" vs a Fatinha ou a "sou tanto melhor para os descamisados deste país, quanto mais me pagarem, coiso e tal."
A vida deixou de ser contada como vida e passou a ser um espectáculo - a encenação deve-se a algum lunático e o guião a um infeliz qualquer que se acha Nabokov porque as meninas que são personagens falam com uma vozinha melada e ar bovino.
O país adquire uma escala patética - as pessoas dizem isto nos autocarros:
" - Fuogo já viste aquela que não sabe qual é a capital de Espanha? E eu que pensava que era burra."
E, de repente, as pessoas adquirem uma ficção de auto-estima com o clicar no comando. Nalgum canal próximo, em vias de ser fechado, há peritos que falam dessas coisas que não interessam nem ao menino Jesus chamadas política ou economia ou cidadania.
Não interessa o que somos, onde estamos e para onde vamos se digerimos o jantar ao sabor das calinadas desse coliseu de hereges de plástico.
A caixinha faz magia, sim. Tornou-se no Xanax ou Lexotan dessas pessoas que se focam nos outros porque não se comprometem com uma ideia para si mesmos ou para o país.
A fábula tem uma moralidade oculta: há que crer em coisas que não se veêm - os ideais, as convicções, o diálogo moram longe desse mundo de princesas esbarradas e com mau português. Há mais nuances no mundo do que aquelas que se fazem nos cabelos, como há mais cores na paleta do que as "qualquer coisa-choque".
Às vezes, penso que devia voltar o tempo do preto e branco - do radicalismo no sentido de raíz ou pureza das coisas para o mundo avançar ao som da valsa que Hegel soube bem descrever.
Falta o furor de outrora - as terceiras vias, embora bem-intencionadas e meritórias, foram pretexto para o enfraquecimento dos discursos e das medidas.
As personagens deste contemporâneo são como o lixo - pode ser que, no final, se possam reutilizar. Até lá, são passadas de flash em flash como hologramas de um vedetismo fatela e ridículo.
Não há espaço para nada de imaterial nesta avalanche de ruído - o ridículo apadrinhou o sucesso e emprestou-lhe um sabor amargo de antropofagia social.
Há um país que definha nos sofás a almoçar a desgraça alheia - este é o apogeu da chamada fast food. Sorve-se a sopa de calhaus, em directo. Almoça-se barrigas de freira e janta-se miúdos de frango, com a tebê a falar dessa justiça em que ninguém acredita piamente. (desculpe-se o advérbio, para os que sabem o que isso é.)
Os predadores são as presas - e, nesta pocilga em directo, "os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros."
Soubessem as pessoas ler ou entender o que leêm e as coisas poderiam mudar.
Até lá, despeço-me - the show must go on.
E o "Grande Máno is watching."

terça-feira, 1 de novembro de 2011

yodelice_talk to me.

Gó.

Há sempre espaço na vida de uma pessoa para esses amores fáceis, para esse espaço que tem sempre a exacta medida que nos serve nas ausências e nos alimenta os sonhos.




Muita da minha vida se continua a apoiar na facilidade com que as palavras se conjugam e os corpos se compõem na presença das pessoas que vestiram o hábito e a convicção de gostar de mim.




A Gó provou-me que há uma grandeza que floresce nas almas e que faz do amor uma espécie de missão. Admiro-a, com cada lembrança que guardo dela, sempre, a fazer-me ampliar esse sentimento como uma narrativa nunca acabada.




Tem nas palavras uma doçura que nos desarma tão rápido como nos devolve essa ingenuidade que empresta ao amor uma tonalidade primaveril, fresca e luminosa.




Há, guardada dentro da armadura resistente do seu corpo, toda a epopeia da minha família. Hoje, enquanto lanchava a mesa farta que prepara para nós, como num ritual antigo de que não sabe desistir, as suas palavras escorregaram para esses tempos do meu avô por perto, para o nome da minha avó que pronuncia como se enfeitasse um altar com flores.




É sempre assim - somos para ela como uma causa, uma luta que não lhe é emprestada porque justamente ama os protagonistas com uma força que reclama sempre justiça.




Sinto, quando a vejo, uma leveza que significa um filtro no ruído do mundo, uma gratidão que é como um longo eco que me impele na sua direcção.




Há uma família que nos nomeia por coisas que o sangue não traz, mas que o granito dos gestos faz brotar bem fundo nele, de forma definitiva.




Fala-me dessa infância difícil - o corpo despido de confortos gratuitos muito cedo, o trabalho, os pais e as irmãs que se uniram todos para serem maiores. E, sempre, como um mar de luz onde navega habilmente, uma fé das mais bonitas que conheci.




Os seus valores respiram nas palavras, com essa serenidade que nasce dos pilares sólidos em que assentam. É um ser humano enorme - o seu olhar é fundo, de uma bondade que se parece a um abraço muito longo e repetido vezes sem conta.




Tem uma gargalhada malandra - ri-se ao lembrar-se de mim e do A. enquanto nos íamos viciando nessa vida inteira de os ter a todos por perto.




A minha avó, os meus pais, o meu avô e um correr de vida fácil, perene e quase definitivo.



Com ela conheci o carinho da gratidão - põe, na memória do meu avô, a saudade que tem desse tempo em que gostava de observar a família feliz na grande sala.



Suspeita que há em mim e no meu irmão, um fanatismo que é a forma imortal dos afectos - sente-se lembrada quando lhe provamos que, em nós, também se gravou aquela tarde, aquela soma de dias indistintamente bons, felizes e nossos.






Foi uma aliada, uma cúmplice nessa fórmula de sucesso que somos - sempre devota do que somos e fascinada por onde conseguimos chegar. Digo-lhe, porque o sinto desde sempre, que ela foi, em parte, o segredo que fez funcionar a engrenagem daquela casa.



Associo o mistério dos seus olhos ao facto de ser como uma guardiã desse tempo em que o mundo se preparava para mim.



Fala-me dela e dos meus avós como se, desde o início, nos esperassem, se preparassem para nós.



E agradece a Deus que a minha avó viva com essa alegria cravada no peito de se poder abrigar no nosso amor por ela e pelo que nos deixa.



Contagia-a o bem que cada um de nós sente e isso basta-lhe. Digo-lhe que, graças a ela, o bem se tornou um lugar mais bonito, se fez uma realidade sempre mais perfeita, mais inteira.



No seu dedo há uma aliança. Riu-se, hoje, ao relembrar-nos a meninice:



"- Oh Gó, mas afinal com quem casaste tu?"



"- Oh meninos, eu casei com Deus."



Hoje entendo que o seu casamento foi com tudo o que tocou com as suas mãos grandes e bondosas. Casou-se, com o peso dos sacramentos, com essa vida que agradece ter desaguado nas nossas. Eu, enquanto me agarra num abraço, agradeço estes bocados que me provam o quão fundo se podem gerar elos e laços de ferro.



O ferro que nos une é essa admiração que se ergueu acima da vontade, acima do tempo, acima de tudo.



Senti, hoje, como sempre, essa certeza de não querer ter nascido noutro sítio, ou desejar outra vida. E, à mesa do lanche, nesta tarde, pudemos ser essa orquestra que se afina pelo eco do que sabemos ser nas vidas uns dos outros.



Isso basta-me - estas horas e, o que me nasce delas, alarga-se aos dias seguintes e fixa-se como uma mancha de luz na memória do tempo.



Ser feliz, para mim, é, em boa parte, recordar. Recordar é abrir uma porta e ter gosto de voltar a entrar. E, para mim, voltar a entrar na casa dos meus avós, pela mão dos meus pais e encontrar a Gó, é repetir o que nunca bastou.



Despedimo-nos dela:



"- Toda a sorte do mundo, meus meninos!"



Em silêncio, enquanto saio, sei que, na minha vida e nestas tardes, isso é um desejo há muito realizado que a Gó nem se apercebe de ter tornado real, para nos fazer felizes.