Rewind

sábado, 21 de abril de 2012

do firmamento.

Havia tardes que se assemelhavam a um grande oceano de calma. Dias em que o mundo não morava na margem das coisas - tudo era uma linha de luz traçada pelo olhar que vivia preso num tempo em que os corpos não se cansavam e as pessoas eram os esteios de um céu fundo e do tamanho do sonho.


Lembrava bem essa vida com o ritmo das estações, das festas de família, desses almoços com mesas do tamanho de salas inteiras onde nunca se sentira sozinho.


A felicidade confundia-se muito com uma luz morna que caía do lustre sobre os rostos das pessoas que haviam de lhe fazer do ser uma espécie de muralha que a saudade fez mais alta.


Nunca se esquecera da forma como olhava os rostos e tentava sempre decorá-los - tinha medo do que viria depois de os não ter - como se a vida fosse um dia deixar de ser fácil de querer, fácil de viver com essa leveza indecente do corpo - a leveza que nasce depois de infinitos banhos de mar numa noite rouca do Verão de Lagos.


Tinha dias em que a saudade estava presa no fundo de si - como uma dor que é como um órgão que passa a morar connosco e que amansamos com o que fomos e fizemos sobre a areia do tempo.


E havia horas em que a saudade chegava anunciada num vício que era um ritual de onde nascia a cumplicidade ou numa paisagem que era como um mapa perdido da vida de todos, a revelação do mistério do sangue e da vida.


O reflexo desses tempos era como a imagem que tinha de si próprio - a imagem que lhe devolvia o olhar atento desses que, no meio do verde do jardim perfumado, eram um incêndio que vibrava perante a ameaça do mundo.


E cedo aprendeu a amá-los com esses socos duros com que a saudade faz abanar os ossos, com esse boiar com que a nostalgia se nos mete nos poros e no ar do peito para se prender na nossa imagem de tudo.


Lembrava-se todos os dias dessas mesas com doces quentes acabados de fazer, desses campos verde-brilhante do orvalho. Era nítido, ainda, o calor do soalho que gostava de percorrer descalço com os cães sempre numa roda eufórica e ruidosa.


As memórias eram tão frescas e luminosas como as pinceladas que nasciam sempre nos jardins em que o silêncio era um balouço e as horas o tempo sem ele.


Havia de os recordar sempre - o que ele era morava nesse chão em que todos erguemos a nossa fé, nesse chão em que erguemos o nosso nome para o termos junto daqueles que fizeram da nossa vida uma catedral de luz e esperança.


Não aprendeu nem aprenderia nunca a viver sem eles - não se aprende a viver uma vida numa paleta de cores diferentes - depois do sol aceso das tardes em que tudo era puro como a cal branca das paredes; depois daqueles nomes ditos e repetidos mais vezes que o nosso, não se recomeça porque não se quer aceitar que se perdeu.


E é essa a magia absurda dos afectos - nascem para morar em nós e tomarem conta da nossa vontade e nos fazerem do tamanho de coisas sem medida.


Chega-se ao infinito quando nos sentimos acolhidos toda uma vida, todas as vezes, pela recordação de um abraço apertado, de umas mãos quentes que agarram as nossas como raízes que se prendem fundo na terra húmida e tenra das florestas das manhãs de Inverno.


Recordá-los-ei - a cada um, a todos - como uma noite em que tivesse visto pela primeira vez o firmamento. Fica-nos o espanto de, no ventre escuro da noite, poder nascer o brilho que sempre nos puxa para cima.


E é como se sempre ele ouvisse:


"Anda cá, pequeno, anda cá."


E fosse, fosse correndo em direcção à luz que é lugar de onde nasce a esperança no coração dos homens.

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