Rewind

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Mamã,

Escreves com os dedos compridos, em qualquer folha e em lugares onde sentes que as palavras são subitamente o caminho. O cigarro tão pensativo quanto tu com o fumo a balouçar no ar leve que corre num murmúrio suave. Decorei-te assim: os olhos cativos de algum desejo, de uma ideia, de uma qualquer cumplicidade com a humanidade das coisas.
É isso que guardarei de ti sempre - a humanidade que me fizeste descobrir em tudo - no cheiro de um livro que alguém pega numa noite mais funda, no sabor que fica nos lábios quando damos um beijo com vontade de morder tanto quanto nos rói a ternura que sentimos.
Revelaste-me a humanidade das pequenas coisas, dessas pequenas coisas que se vão convertendo num antídoto contra o medo e o terreno onde brota a esperança.
Ficou-me de ti, malandra, essa sedução pelos pequenos nadas que provam a presença dos outros - vem-me à memória um sorriso teu, vejo-te passeando serena na cal da areia de uma praia qualquer. Não, da nossa Meia Praia como uma grande planície de longos passeios em que nos confrontamos para nos amarmos mais, onde nos descobrimos cúmplices do nosso crime de repetirmos os corpos na corrente dos dias sem cansaço, sem outra dor afinal que não a de um amor que tentamos ajeitar cá dentro, arrumar numa medida que não lhe serve, que o não quer.
Acho que temos um amor perigoso - desses que desafinam, desses que nos vestem de uma serenidade agitada - essa, sim, que nos nasce do absoluto encantamento que fica depois de uma noite de música na varanda, com os pés com uma baínha de calor dos dias de sol.
Todo o amor é uma forma de violência - em cada rendição, depois de cada cigarro e palavra lançados para a noite, fica-nos essa súbita vontade de aconchego nos braços um do outro.
Aprendi contigo a humanidade das coisas - essa segunda pele que fica em tudo depois de nós. Nada mais é igual. Fica presa em tudo a luz, a cratera do impacto e as sequelas da colisão. Ficamos nós como prova última de nós mesmos. Capazes dessa forma sublime de nos sentirmos muito para lá das ausências, de nos querermos muito para lá das feridas com que o mundo nos inicia e nos baptiza.
Só queria dizer que me ensinaste aos olhos um outro ver - como num sequestro aprendi a viver dentro das coisas - dentro das casas de sempre, dentro das linhas de cada página, lidas e relidas, dentro das mesmas pessoas, dentro dessa catedral de luz que é a memória.
Aprendi a gostar de estar nos mesmos sítios, pertencer a algum lugar, honrar com os rituais - a nossa vingança sobre a morte - aqueles que nos mostraram o mundo. Reviver é como tornar a captar essa avalanche de espanto que cada novidade traz.
Nas crianças o espanto é quase uma promessa da imortalidade das coisas, dessa humildade de ter no olhar o amor às coisas simples, o amor propriamente dito.
Só com a memória há uma gratidão que se agiganta até ao infinito - e a cada lembrança sentimos, de novo, o gelo do espanto que sempre nos causam a bondade, o perdão, os erros desses outros que sabem da vida o mesmo que nós: que fomos dados uns aos outros e que ficamos a morar na pele de quem prendemos na jornada.
De ti ficou-me esse reparar no que fica em tudo depois de nós - como se nos dessem a possibilidade de escrever uma narrativa que se prolonga muito para lá de nós, que se infiltra na pele como um beijo para nos adoçar o sangue, nos bordar de fé a sombra do caminho.
Aprendi contigo esse encantamento pelos silêncios do mundo, esse silvar sereno da memória que se nos revela como um presente que o passado nos traz.
Não fiquei o mesmo depois de ti - da tua pele nasceu a minha. E, com o tempo, sinto que ainda escreves cá dentro com essa tinta permanente de que gostas tanto, sempre que me lembro desses pequenos nadas que enchem as páginas da minha vida.
Principio por dizer "obrigado" que me parece uma palavra bonita e que vai bem com o mais luminoso dos amores.

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