O papel e as letras, a caligrafia alinhada ao sabor do sentimento - as palavras que o sangue te punha a passear no corpo. Não vives nas palavras, nem tu, nem ninguém cujo caminho se tenha enamorado do meu, algures lá atrás.
As palavras esmorecem quando já não conseguimos imaginar a voz que as quis para nós; as palavras vão se esfumando no horizonte, como se esfumam todos os nossos desejos quando a nossa vontade não lhes empresta força.
A tua letra miúda, corrida, o ritmo sincopado de algumas passagens e os dedos compridos que deixaram um cheiro que ainda se sente. Mas não moras já nessas palavras.
Ou mesmo que mores, elas já não são um convite para entrar, subir e ficar preso a ti enquanto anoitece, na janela em frente ao mar.
Mudei e tu mudaste. Confesso-te que talvez saiba que essas palavras ainda existem, ainda valem. Mesmo contra mim e contra ti e o que o caminho nos trouxe depois.
Mas já não moras nelas. Nem tu, nem os teus cabelos longos que tiveram outras noites que os agitassem; outros sonos numa praia qualquer.
Mas as palavras são minhas, minhas porque as guardo. Tuas porque as não voltas a pisar; a encher-lhes de tinta negra o corpo.
Por isso, larguei as palavras. Dei o meu corpo como tela onde passa a memória que tenho de ti - e podes ser inteiramente tu e inteiramente minha, apesar de já não estarmos juntos.
Moras em cada entardecer, em cada um desses desmaiares dourados, com cheiro a espuma e sabor a areia molhada. Nem eu te diria as mesmas palavras, nem o ritmo delas nasceria igual.
Ao morares dentro de mim e eu dentro de ti, somos um do outro, mesmo que a voz que usamos em tempos, não exista mais.
Não te prendi nas palavras e imagino que me não tenhas guardado nas minhas. Em cada pôr-do-sol imagino-te a mudar: uns dias um dourado espesso e noutros um escuro fundo e triste. E cada dia as palavras mudam e quase posso oscultar-te. Saber que os teus cabelos não brilharão tanto; que provavelmente estarás na mesma janela muito quieta com ondas desenhadas no espelho do olhar. E o meu corpo como tela - a tua memória de encontro a mim como o sol de encontro ao azul do céu. É essa a verdade que não mostramos a ninguém - a que te esconde nos raios de sol para te revelar a mim.
O tempo passou e o papel continua comigo - a tua letra e o teu cheiro. Mas já não moras nas palavras. Vives em cada dia que morre e, talvez, depois de algumas outras cartas, de alguns outros corpos, um dia nos encontremos para que a tua letra miúda e corrida me conte o que viveste nesses dias que foram morrendo. Talvez te conte também o que o tempo me foi trazendo: todas as vezes em que fui ver o mar ou em que passei perto de alguma coisa onde estava presa a tua lembrança para a apanhar. Ou não.
Mas sei que morarás sempre em cada pôr do sol, contado numa letra miúda e corrida, num céu de papel.
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