Vóvó,
Milinha, meu amor,
Corria o ano de 1924 e, neste dia, há 96 anos, sei que foste esperada com um abraço.
Houve uma infância dourada em que recebias convites das amigas para irem tomar chá e baptizarem as bonecas, houve pele e verdade suficientes para que não amares os teus fosse uma impossibilidade absoluta.
Anos mais tarde, em junho de 1987, dar-se-ia o nosso encontro. Disseram-me que o teu coração tremeu com o medo de que os teus gémeos - prematuros - não vingassem.
Quando, em pequeno, me contaram isto disse-te,
Milinha, por isso é que vou cuidar do teu coração a vida toda!,
Ver-te feliz com os teus olhos azuis-abrigo acesos de alegria foi, em todas as horas, a minha vontade mais funda.
Estavámos em 1998 e o país ardia com o primeiro referendo à IVG. Eu, na altura com onze anos e, em boa verdade, já avesso à neutralidade, quis pôr o assunto em cima da mesa.
Era um dia quente - jantava-se no terraço,
Então meus amigos, já decidiram como vão votar? Eu ainda não posso fazê-lo, por isso, façam-no bem, faz favor.
E expus o meu ponto de vista - pessoalmente, se soubesse que seria Pai, quereria conhecer os meus filhos. E disse mais - ninguém é a favor do aborto. Mas não podiam continuar a condenar mulheres como se queimassem bruxas.
O A. estava comigo e os Pais e vocês ouviam atentamente.
Até que eu lancei para o ar,
E o que sabemos nós verdadeiramente das vidas dos outros?,
Defendia que se acabasse com a hipocrisia que, como sempre sucede, vitimava mais as mulheres pobres - essas que não sabiam onde ficava Londres e as clínicas onde os mais hipócritas de todos emendavam as "asneiras".
Falámos todos muito, nessa noite - tu, o Avô e os Pais concordaram comigo e com A.
Anos mais tarde, em 2007, fomos votar cedo.
Cruzei-me contigo e disse-te,
Diz que sim, não é, Milinha?, piscando-te o olho,
Aquela conversa sempre na minha cabeça e o fim da hipocrisia que, em família, escolhíamos.
Outra conversa, também no terraço,
Vovó, Vovô, no vosso tempo, que métodos contraceptivos usavam?,
O Avô muito prontamente explicou-me e, em jeito de brincadeira, atirou,
Nunca confies nesse engodo das temperaturas! Dá asneira!,
E eu,
Oh Vô, se calhar vocês aqueceram foi demais!,
Todos se riram.
Hoje, eu com 32 anos, tu com 96, o Avô que faria 100 este ano e esta conversa não ter tempo. Vocês foram sempre o futuro.
Uma vez disse-te,
Vó, nem parece que nasceste em 1924!,
Pequeno, nós não somos do tempo em que nascemos, devemos ser do tempo em que vivemos,
O amor começa, como sempre digo, com o espanto.
Não estava condenado a amá-los - amo-os porque não há outra coisa que me mereçam. Mais - o meu amor não será nunca retribuição suficiente para o milagre que foi o chão do meu caminho.
Não acredito no amor sem carne - devo ter quase deslocado, umas quinhentas vezes, no mínimo, as clavículas dos que amo. Se é para abraçar, seguro-os inteiros. Toda a vida, eu a dizer,
A ternura dói!,
Eu tenho os olhos nas mãos, está visto.
A minha Avó ria-se imenso das minhas investidas junto da nossa Gó,
Oh Gó, mas porque é que os pobres não se zangam mais? Se não fosses católica, eras mais refilona, sabes?,
Oh menino, o menino não sabe que os santos foram pessoas como nós? Que a vida deles nos pode servir de exemplo?,
Olha, já sei qual seria - Maria Madalena! Essa, ao menos, segundo consta, teve direito a algum regabofe antes de ser santa!,
Tive sempre uma gratidão imensa pela liberdade com que me educaram - quanto mais livre me deixavam ser, mais refém ficava de tudo isto.
É com a liberdade que se prende para sempre e em definitivo.
Diz a nossa Agustina que toda a família é uma forma de sequestro. Eu, até hoje, sofro de Síndrome de Estocolmo, coitadinho. E pior, desejo ardentemente que se esqueçam de nós para aqui - todos juntos, todos mais livres para voarmos porque o chão é de uma pedra que não quebra.
Outro dia,
Olhe, doutor, quando a sua Avó morrer, vai-me deixar saudades, diz-me a funcionária que lá temos agora. Depois da Gó, essa uma de nós, serão todas só isso.
[Wrong choice of words, pá, pensei]
Devo ter fulminado a criatura quinhentas vezes, enquanto, por cima do ombro dela, intuí que a minha Avó poderia ter ouvido a pérola.
Apresso-me a sentar-me junto dela,
Já viste esta, Milinha? Está cheia de pressa para receber o último salário que levará desta casa, ao falar assim de ti. Nem para ela é boa, coitada!,
A minha Avó aperta-me a mão no sofá, sorrindo.
Amparo a minha Avó e, com isso, amparo a minha vida.
Tiro o meu fio de prata - o meu "guizo" - como lhe chama o meu irmão.
E digo à minha Avó que aquela corrente somos nós - a cruz que a minha Mãe me deu, a cruz que ela me deu, a medalha que foi do irmão mais velho dela e uma medalha da Senhora do Carmo que comprei, num dia 30 de agosto, só para dizer à minha Avó que a mãe dela, Maria do Carmo, não estava esquecida. Ela que faria anos nesse dia.
O fio dá-me sorte, como eles me deram.
Em pequeno pedi à minha Avó,
Fala-me do mal,
O que o meu coração queria saber era como se supera o lixo do mundo, como se emendam os erros, como nos salvamos nós, apesar de tudo.
Aprendi a viver mas, também, a sofrer com a minha Avó.
Ao ouvir, muito cedo, das falhas do mundo, preparei-me para elas. E descobri que o amor salva. Aliás, que só o amor salva.
A minha Avó salva-me todos os dias,
Pequeno, só quero que um dia um neto teu te ame como só tu me amas.
Toda a vida me perguntaram,
De onde raio te vem tanta alegria?,
Daqui. - um dedo que aponta para o coração e um coração que apontará, em todas as horas, o caminho de casa.
Obrigado, meu amor!
Parabéns!
Não estava condenado a amá-los - amo-os porque não há outra coisa que me mereçam. Mais - o meu amor não será nunca retribuição suficiente para o milagre que foi o chão do meu caminho.
Não acredito no amor sem carne - devo ter quase deslocado, umas quinhentas vezes, no mínimo, as clavículas dos que amo. Se é para abraçar, seguro-os inteiros. Toda a vida, eu a dizer,
A ternura dói!,
Eu tenho os olhos nas mãos, está visto.
A minha Avó ria-se imenso das minhas investidas junto da nossa Gó,
Oh Gó, mas porque é que os pobres não se zangam mais? Se não fosses católica, eras mais refilona, sabes?,
Oh menino, o menino não sabe que os santos foram pessoas como nós? Que a vida deles nos pode servir de exemplo?,
Olha, já sei qual seria - Maria Madalena! Essa, ao menos, segundo consta, teve direito a algum regabofe antes de ser santa!,
Tive sempre uma gratidão imensa pela liberdade com que me educaram - quanto mais livre me deixavam ser, mais refém ficava de tudo isto.
É com a liberdade que se prende para sempre e em definitivo.
Diz a nossa Agustina que toda a família é uma forma de sequestro. Eu, até hoje, sofro de Síndrome de Estocolmo, coitadinho. E pior, desejo ardentemente que se esqueçam de nós para aqui - todos juntos, todos mais livres para voarmos porque o chão é de uma pedra que não quebra.
Outro dia,
Olhe, doutor, quando a sua Avó morrer, vai-me deixar saudades, diz-me a funcionária que lá temos agora. Depois da Gó, essa uma de nós, serão todas só isso.
[Wrong choice of words, pá, pensei]
Devo ter fulminado a criatura quinhentas vezes, enquanto, por cima do ombro dela, intuí que a minha Avó poderia ter ouvido a pérola.
Apresso-me a sentar-me junto dela,
Já viste esta, Milinha? Está cheia de pressa para receber o último salário que levará desta casa, ao falar assim de ti. Nem para ela é boa, coitada!,
A minha Avó aperta-me a mão no sofá, sorrindo.
Amparo a minha Avó e, com isso, amparo a minha vida.
Tiro o meu fio de prata - o meu "guizo" - como lhe chama o meu irmão.
E digo à minha Avó que aquela corrente somos nós - a cruz que a minha Mãe me deu, a cruz que ela me deu, a medalha que foi do irmão mais velho dela e uma medalha da Senhora do Carmo que comprei, num dia 30 de agosto, só para dizer à minha Avó que a mãe dela, Maria do Carmo, não estava esquecida. Ela que faria anos nesse dia.
O fio dá-me sorte, como eles me deram.
Em pequeno pedi à minha Avó,
Fala-me do mal,
O que o meu coração queria saber era como se supera o lixo do mundo, como se emendam os erros, como nos salvamos nós, apesar de tudo.
Aprendi a viver mas, também, a sofrer com a minha Avó.
Ao ouvir, muito cedo, das falhas do mundo, preparei-me para elas. E descobri que o amor salva. Aliás, que só o amor salva.
A minha Avó salva-me todos os dias,
Pequeno, só quero que um dia um neto teu te ame como só tu me amas.
Toda a vida me perguntaram,
De onde raio te vem tanta alegria?,
Daqui. - um dedo que aponta para o coração e um coração que apontará, em todas as horas, o caminho de casa.
Obrigado, meu amor!
Parabéns!
RM|XVIII-I-MMXX
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