Porto, 13 de Setembro de 2008
Deus,
Esta carta não é um pedido de desculpas. Não é um pedido por milagres, nem coisas que me levem de vez as dúvidas. Se bem te lembras de mim - sim, aquele puto louro sempre com perguntas, a tentar destruir, talvez para que alguém lhe desse a resposta que levasse as nuvens, aprendi a viver com elas, desde sempre. Também tenho dúvidas relativamente a ti e ao sentido das coisas. Bem sabes, falo muito. E contigo, também. Aqui vai uma carta. Sim, eu sei que falo depressa e, às vezes, não sei ouvir. Aqui vai.
Sabes o que se tem passado nos últimos dias, não? Sabes que tem sido difícil saber alguém de quem se gosta mal, ou, com alguém a sofrer também, certo? Por isso, esta carta serve para te falar do Amor.
Mas do Amor visto de baixo. Do Amor vivido por entre as pedras do caminho, do Amor feito de terra e de gente. Do Amor feito, desfeito e refeito, vezes sem conta.
Sabes, não duvido que ames mais do que eu. Ou que nos ames a todos, muito, mais e melhor do que eu. Que saibas estender a mão a todos, abraçar a todos e chorar por todos, por igual. Ainda por cima prometes amar-nos eternamente. Contra isso, contra esse amor sem deslizes, sem dor, sem condicões, nada posso, bem sabes.
Mas gostava que daí de cima visses bem que aquilo de que nos fizeste, bem ou mal, encheu-nos de vontade de amar. E nesse amor, nesse vestir a pele do outro, nesse acolher, nesse perdoar, nesse lutar diário e sonhar acordado, vejo-Te a Ti.
Sabes que temos mãos e olhos e um coração, que serve de memória mas sem Alzheimer. Sabes que desde pequenos somos enredados nos laços dessa "coisa" chamada Amor e que nos puxa uns até aos outros, até fazer faísca. Sabes, não sabes? Sabes que há lugares de onde nada, nem coisa nenhuma podem tirar aqueles a quem amamos. Sabes o que é rir mesmo com vontade? Sabes o que é chorar porque, de repente, já não tens quem te abrace, ou quem se encha de orgulho por ti? Sabes o que é o colo, o que são os abraços e o amar com aquela dor e alegria, tantas vezes maior do que tu?; aquele amar sem limites?; aquele amar tão maior do que tudo, do que qualquer coisa que chego a pensar que é um Amor como o teu? (Desculpa a pretensão, mas modéstia e Amor nunca combinaram.)
Mas como vês tu isso? Não nos vês tão felizes, não sabes tu que tudo se compõe sempre com o cimento dos afectos? Acredito que saibas tudo isto. Acredito que, ainda que à tua maneira, sorrias de contentamento por nós.
O lugar que nos deste para amar, para nos amarmos uns aos outros, não é fácil. Mas conseguir medrar por aqui, nós conseguimos fazê-lo, tens de admitir. O Amor tem destas coisas. O que queremos mesmo que cresça, há-de singrar, porque as raízes são bem fundas dentro de nós.
Por isso, não te peço para nos fazeres mais perfeitos, mais capazes desse teu Amor. Peço-te que nos deixes os rostos, as mãos, as almas para habitarem os lugares de sempre. Para que os reencontremos todas as vezes e para que nos acolham no lugar que nos habituamos a chamar de "nosso". Eternamente, enquanto dure. (Podes fazer com que dure mais um bocadinho, para todos nós?)
E sabes não tenhas medo de ficar sozinho aí em cima. Habituei-me a ver-te com nuances, nas dobras da vida, como num quadro impressionista. E gostava de acreditar em ti. Por enquanto acredito no Amor. No Amor que alguns dos que já cá não estão e que, decerto, ja conheces, te poderão falar. (Diz-lhes que ainda os amo.)
Deixa-me acreditar que hei-de ter isto por muito mais tempo. E de cada vez que encontrar alguém a quem amar, estarás comigo. E este caminho há-de me levar até ti, não tenho dúvidas. Um dia.
Obrigado pelo Amor. Obrigado por podermos sentir, ainda que de maneira tão imperfeita, parte do que sentes por nós. Obrigado pelas palavras, pelas lágrimas, pelos gestos e pelo sentir. Obrigado.
Deixa-os por aqui mais uns tempos. E, se um dia me levares, hei-de esperar contigo por eles. E vou-te perdoar, que sabes bem que nos dia que correm é raro. Lembra-lhes só do Amor que mais do que meu, foi sempre deles.
Teu (um bocadinho) e todo daqueles a quem amo,
Ricardo
PS: Aparece. Já não estamos no tempo dos pais incógnitos.