Uma folha branca diante dos meus olhos. O papel liso com a luz que o beija em brasa - é fim de tarde. Lá fora, as ondas num voltejo permanente. Presa nas rochas a saliva de um amor perpétuo. Começam a despertar os ruidos da noite - ecos distantes como passos perdidos sob o som do Mundo.
O voo acrobático das gaivotas; gente que caminha solitária na praia. Julgo ver um beijo entre dois corpos abraçados sob um céu de fogo que se extingue.
Tenho os sentimentos - esses grandes corpos que temos dentro de nós; massas de um galope marcado; de um respirar ofegante; de uma dor lancinante que rasga. Tenho esses corpos dentro do meu. Mas queria as palavras. Queria que as palavras se alinhassem num trote suave na brancura de gesso do papel. Que tivessem a mesma intensidade e dissessem o que vem sem som. Queria-te apenas a ti - as palavras que fixassem o brilho escuro dos teus olhos; a graça pueril do teu cabelo quando o vento te pegava ao colo na praia; queria o adjectivo preciso que te roubasse ao tempo para te preservar imune nesse impulso com que me pões na carne o espírito.
O mar continua nesse amor perfeito esculpindo as formas do corpo de quem ama.
Ouço alguém que passa e ri - uma gargalhada luminosa que rasga a neblina da vida e ilumina ainda mais o teu rosto que me aparece - perfeito e suave.
Continua numa síncope intensa o galope deste vazio cheio de vida. E procuro as palavras no caminho que ele trilha. Chegam-me ao pensamento palavras. E, de novo, o teu rosto. É ele quem me prende a atenção. A luz que repousa no fundo do teu olhar; as tuas mãos pousadas na capa de um livro qualquer enquanto dormitas à lareira, num dia de Inverno qualquer.
E sempre o mesmo galope. E o mar que se cumpre e se dá, sem palavras.
As palavras dão-me medo, agora. Meto as mãos nas gavetas da memória. Saem de lá todas as imagens, de todos os dias, de todas as horas. Não guardei palavras. Ou as que guardei foram as tuas. Tudo o resto és tu e é teu - o teu corpo a habitar-me a memória e a envelhecer intocado dentro de mim.
E, de novo, a folha branca. O gesso torna-se azulado. É a noite que chega. O céu é um guache mais carregado. A areia fica quase roxa e as rochas negras. Chega um vento que namora as janelas aqui de casa. Talvez o Verão esteja no fim.
Vêm as palavras - rondando, serpenteando no silêncio audível. E a tua imagem como um filme mudo; paralelo.
As palavras dão-me medo, agora. Podia prender-te no corpo de algumas delas. Amarrar-te à promessa de vida que elas são. Namorar os adjectivos mais vivos; edificar as metáforas mais bonitas para te inscrever na mármore da eternidade. Mas dão-me medo as palavras, agora.
Como emprestar-lhes a avalanche que nasce cá dentro? Como coser-lhes o exacto pormenor de uma madeixa tua que repousa no meu peito enquanto dormes?
Por isso me dão medo as palavras, agora. Porque se acaso te não dissesse perfeita como és ou omitisse qualquer falha tua - essas que exactamente te tornam possível de amar sempre, teria de reescrever o que és. E serias várias coisas. A cor dos teus olhos estaria sempre a mudar; o teu imenso brilho quando sorris oscilaria numa escala sem fim. E não pode ser. O mundo faz-te mais bonita todos os dias. Mas o amor é o mesmo.
Não te quero prender no que te não diga. E não quero ter de dizê-lo. Dar o teu nome e a tua graça a uma imagem que não é a tua.
E, ainda, a mesma folha diante dos meus olhos. E sempre o mar.
Não cabes nas palavras.
E logo quando chegares e estiveres nos meus braços o mar entrará pela janela e tu serás a rocha que amo enquanto o vento rouba de junto da janela uma folha branca e vazia qualquer.
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