Rewind

terça-feira, 23 de março de 2010

Noite.

O vinho, os livros e a música. Tu por perto encantada com uma dessas personagens que tiravas das páginas como de um encontro fugaz na rua. Prendias os olhos em mim, enquanto fitava o mar com o corpo pousado no teu. A tua pele com esse cheiro frio que o ar da noite traz para cobrir os corpos. A tua mão pousada no meu peito e a luz das velas a revelar as formas escondidas do teu corpo.
E depressa esquecíamos a noite e tudo o que fosse demasiado concreto para nos morar fora da pele. A forma como gostavas de me encontrar numa personagem ao menos que fosse ou de não me encontrar em nenhuma delas - como para me dizer o que eu não era; gostavas muitas vezes que nenhuma dessas palavras servisse para nos dizer; que nenhuma sequência fosse sequer um remoto esboço daquilo que eram as noites assim. Às vezes, chegava a pensar que lias e tiravas dos livros um prazer maior quando percebias que havia algo que só tu sabias e ninguém poderia dizer.
Discutir personagens, enquanto me deixavas escolher a música. Encontrava-te em muitas das mulheres que me passaram pelos dedos. Mas talvez todas elas fossem tu mas nenhuma como tu: tinhas esse modo de ser que tornava um sorriso leve ou uma discussão mais acesa um modo singular de não seres como as outras.
Essa dose de encantamento de querer sair dos livros e tocar o que lhes foge e mora na nossa pele. Demorar nela os dedos, os olhos e as horas. O tempo como um peso esmagado debaixo das ondas - e finalmente o espaço para desenhar na memória o mapa do teu corpo; o espaço para fixar a forma como a luz banha o fundo dos teus olhos. Tempo para ficar nos teus braços e ver a rua deserta - e ter a certeza de que essas palavras - as dos beijos e as das formas e movimentos, só as saberás tu - como se esse filme só pudesse ser rodado pela força conjunta das nossas mãos.
Quando a música acabava podíamos perceber que o ritmo dos nossos corpos era um chão que as palavras não marcam. E do que não se conta, como um segredo escondido debaixo da pele fina e amarelada de algumas páginas, ficava apenas o corpo visível - os livros pousados, o vinho nos copos e a música como um eco lançado no escuro de uma noite qualquer.