"Não daria, decerto, um passo para agir; daria, porém, mil para apurar uma ideia que fosse curiosa - pensei. Pensei-o dolorosamente, por ver como é possível iludir-se uma vida justamente com aquilo que devia redimi-la - o pensar."
"-Que está a fazer? - perguntei, com estupidez.
- Nada. Estou a sofrer."
"Por enquanto é livre porque, apesar de tudo, pensa. E só a acção nega a liberdade. Agindo, perde-se. Porque, quando se age, não se pode agir outra coisa."
"Mais do que a doença - dizia - sempre lhe doera ser levado de rastos pela "coleira da convenção". A originalidade era o seu respeito por si próprio. Não havia dois homens iguais sobre qualquer aspecto. Importava a cada um separar o que em si havia de único e valorizá-lo. As verdadeiras dores ou alegrias nasciam e morriam na inteligência. Atingida a grandiosidade interior, ficava-se anestesiado para tudo o que é fora."
"Finalmente (Guilherme) foi-nos estabelecendo a diferença entre essência e existência. Isso que era escolástico, disse, criava, milagrosamente, com o existencialismo uma verdade nova. Porque a essência humana, a sua existência tinham sido, até aí, peças mortas de museu, frias invenções da mecânica intelectual e agora cheiravam a carne, a sangue quente. A essência (So-sein) já não era uma máquina parada, a que a existência viesse a dar movimento. Agora, a própria existência do homem incluía-se na sua essência ou, por outras palavras, a existência (Da-sein) precedia a essência (So-sein). Maravilhosamente o homem erguia-se livre, absurdamente livre, no instante inicial da vida humana. Se ser homem era, antes de mais nada, existir; e se existir era agir, o homem tinha o seu destino nas suas próprias mãos antes que alguém viesse ditar-lhe leis. Podiam matá-lo, mas não lhe roubariam a liberdade. Por outro lado, era impossível decidir do homem como se decide de uma pedra. Porque só na imobilidade a inteligência se entende a si própria,como os velhos e os doentes que exigem descanso e silêncio. Mas o homem vive e portanto não está quedo. Que tem que fazer com ele a inteligência humana? Estude as pedras e cale-se diante do homem."
"- Realmente. Liberdade é bem outra coisa. O domínio do que nos domina e nos não deixa realizar. A consciência da necessidade.
(...)
- Diga; não é assim? Tem outra definição?
- Não tenho definição, não sei o que isso é. Nada define nada, meu homem. A definição é uma paráfrase. É sempre um polícia à verdade que força a limitação da barreira. Mas para o caso também podia dar uma se quisesse. E melhor que a tua. evidentemente. Penso que a liberdade é a possibilidade de nos contradizermos com verosimilhança. Os valores da vida são de dentro, nunca de fora. (...) Mas entenda-se: tudo quanto disse pode ser verdadeiro ao contrário."
"Não lhe repito as palavras porque as explicações de Sérgio tinham sempre avanços e recuos, desvios subtis para a esquerda e para a direita. Só com treino eu lhe apanhava uma linha firme de pensamento. Mas se depois lha apresentasse, contínua, definitiva, embora recurvada, Sérgio enfurecia-se, cortava-a aos bocados, amassava-a e restituía-ma assim, porque só assim era exacta. Só na imprecisão lhe cabia todo o anseio ou ideia."
"A vida cortara-me uma estrada larga. Sentia-o quase desde que sentia, porque cedo me despiram de infância. Não cheguei a romper uma bola de trapos, não li Conan Doyle, decorei ideias de homem, antes de ser homem para elas. Para os problemas da vida que ia tocando, eu tinha já, prontas a intervr, fórmulas rigorosas. Necessitava apenas de percorrê-las até às raízes, como depois da tabuada decifrei Aritmética Racional."
"Ser velho em menino é duro."
"Ouve: quando se começa, tem-se sempre a impressão de que se é definitivo. (...) Tem-se sempre a impressão de que se é justo. (...) Não há juventude injusta. Pode é haver juventude errada."
"Para mim, o cepticismo era um escarro. Não concebo cobardia maior. Nem traição. Nem petulância. Porque o céptico, gozando-se do trabalho dos que não duvidaram, está sempre prevenido contra falências futuras, sempre pronto a exibir o seu equilíbrio por entre as quedas fatais de quem anda de pé. O medo de cair, leva-o de rojo. O medo de o escarnecerem, fá-lo casquinar. Tudo é relativo - admito. Penso porém que só a coragem de ler absoluto no relativo consegue mover o mundo."
"Era quase bela e talvez por isso mais atraente, como um maillot que quase despe a mulher a enriquece de desejo, ou como um livro que quase diz tudo se torna mais interessante."
"Aqui têm a imagem de uma mulher seminua. A simples fotografia não feria o leitor e portanto os poderes públicos. Mas se um escritor, frente à mesma fotografia, a reproduzisse pela palavra, a censura interviria.
Porquê? Porque a realidade da palavra era mais forte que a da fotografia. E se da palavra passássemos à ideia, a realidade seria de arrasar.
- Pense-se no trabalho censório, como se as ideias pudessem ser censuradas no cérebro de cada um.
Tínhamos pois uma escala graduada de realidade a partir do objecto e a acabar na ideia. Assim: objecto, retrato, palavra, ideia."
"- É sempre interessante saber em que é que os outros não são o que nós somos."
"- Interessante, não é? Temos nós aqui um conflito entre o valor que socialmente se dá às coisas da inteligência e os meios práticos que se dão para aguentar esse valor. (...)
- Porque o dinheiro nunca serviu a inteligência. A inteligência é que tem servido o dinheiro. O que é preciso é inverter a hierarquia."
"A tristeza é o lado sério dos levianos."
"- Mas, por favor, não se julgue obrigado a fazer-me ver o erro. É terrível que no mundo de hoje ninguém possa escapar a uma rédea qualquer. O mundo fez-se pequeno, ninguém se pode mexer à vontade. Ninguém mais tem o direito a agir sozinho. Em qualquer parte da vida, há sempre um organismo pronto a absorver-nos, a atrelar-nos uma carroça. A liberdade é um sonho de criança. Porque até os que inventam os deuses lhes morrem às mãos. Em todo o caso, é bom teimar no sonho. Talvez eu esteja em erro, de acordo. Mas, por favor, ninguém me venha dizer que estou errada. Quero ficar de fora. Deixem-me ficar de fora."
"De modo que a catalogação de uma arte faz-se sobretudo pela catalogação da ideologia do artista. Não pela própria obra."
"Se pensa que disse, disse mesmo. A ideia é o princípio da criação."
"- Para uma sociedade equilibrada não basta a permeabilidade dos indíviduos. (...) Não é só necessária a permeabilidade, mas a flexiblidade. O que torna os homens infelizes é oporem princípios e atitudes estáveis ao movimento permanente que os arrasta e transforma."
" Quando um acto é consciente, salva-se ao menos do ridículo."
"- Mente. Naturalmente que a realidade exige uma cultura própria. Não se constrói uma ponte sem se saber engenharia. Mas há a parte nobre da cultura que não deve demolir-se. Caso contrário, virámo-nos para a materialidade e enterramo-nos aí."
"- Nunca me julguei definitivo para agir de acordo. Nunca traí a minha condição humana."
"- Pode-se morrer mais que uma vez e recomeçar tudo antes de morrer definitivamente. Às vezes, basta que não tenhamos à roda os que foram vivos connosco, Tudo isto é idiota, mas sofro se você disser que o é. Seja criança um momento e diga que o não é.
- Não é."
"No entanto, meu amigo, foi pena que não vivesses. Porque aconteceram, meu Sérgio, coisas bem extraordinárias desde o dia em que morreste. Mas a terra chamava-te, apressada, para que subisse da tua podridão a prometida flor que havia nela, e que tu sempre negaste. Porque em todo o teu desvario como no dos teus amigos vivia justamente a promessa do mundo que veio nascendo; como em tudo o que apodrece se promete a verdade de um fruto novo. Por isso, sem mais uma palavra, aqui te deixo, em sossego, com a terra que te cobre.
Dorme em paz."