Ficava muitas vezes quieto. Se lhe vissem o rosto todo ele era uma espécie de promontório para onde tudo o que era se escapulia - como na direcção do mar, como num mergulho veloz. E não se afastava dos outros para os evitar - mas no silêncio podia escutar melhor as suas vozes, relembrar-lhes infinitas vezes um sorriso mais aceso ou uma qualquer ideia que ele quisesse assentar, como com medo de que o vento a levasse. A saudade era isso mesmo - ouvir chamar em nós a voz de um outro nome, querer um corpo que nos sirva, um espaço onde possamos, enfim, parar enquanto a noite desce, devagar, com um rumor amplo de calor e cheiro a fruta.
E não sentia que os rostos fossem menos seus - gostava de os relembrar para não os perder - como uma passagem breve para ter a certeza que o amor ainda habita os lugares de sempre.
A luz que as memórias acendiam nele, usava-as como um antídoto. Como para se certificar que o tempo não levara as palavras, escritas num papel, que queria ver amarelecer.
Trazia todos para se sentarem, de novo, em volta de uma mesa numa noite aberta e funda como um olhar sincero. Coleccionava memórias - como páginas lidas e relidas vezes sem conta; ou um filme visto e revisto. E sempre sorria ao reparar num pormenor que o impacto do amor, assim a quente, o tinha impedido de ver. Como um pequeno toque, uma pequena cumplicidade que a visita que fazia permitia salvar do esquecimento. Compreender os outros é, frequentemente, vê-los em retrospectiva; chegar e sentarmo-nos à mesa dispostos a que a noite dure sempre; arranjar tempo para ver até onde se desenham os contornos que pusemos na face das horas.
E não lhe sabia a vida a roupa velha e gasta com que vestia os dias por vir. Viver é isso mesmo - reparar que os despojos do mundo, que carregamos todos, não raras vezes ainda nos servem.
Gostava de ver de perto - demorar a atenção no rosto de alguém que amava. E sentia-se bem nessa companhia sem corpo que chamava para perto de si.
Essa era talvez a verdadeira cumplicidade - a que sentimos existir sem corpos, porque exactamente se forja do que alimenta a lembrança e mora do lado de lá do espaço.
Ter tempo era reviver - era, muitas vezes, um agradecer silencioso pela profundidade de alguns momentos. E pensar que a sorte nos aconteceu. E guardar todo esse manancial espesso - isso a que chamamos passado - como um trunfo sobre as linhas que vamos ter de escrever mais à frente. A gramática da humanidade faz-se disso mesmo: da memória que a pele guarda escondida e cujo nome o sabe o nosso peito.
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