Encontrei o zé mário numa noite escura, numa sala ampla e luminosa. Com ele, o reportório e as palavras que nunca nos cansamos de ouvir. Uma plateia distribuida pelo chão e as poltronas e, ali ao pé, a mesma viola. Há pessoas assim - revelam-se na forma transparente e aberta como enfrentam a própria vida e os dramas por que passaram. O zé é um gajo porreiro.
Ouvi-lo falar e discutir com ele a liberdade e a revolução fazem-me sempre lembrar aquilo que a minha educação me deixou na lembrança - que a admiração é conseguir sentir humildade na diferença. Há uma emoção - como um ligeiro arrepio na pele - que sentimos face ao modo aberto e genuíno com que algumas pessoas ainda falam daquilo em que acreditam.
Percebi porque não quer o zé o labéu de cantor de intervenção. Para ele, os que não intervieram, como aqueles que nunca o fazem são também responsáveis; tomam também eles uma posição sobre o sentido da vida e das coisas. As canções do zé são sobre aquilo que o zé viveu, aquilo que o zé não viveu e esperou por ver acontecer.
Sou diferente do zé. Ali, numa sala acesa contra o frio e o escuro da noite, percebi que há muitos caminhos que não fazemos juntos. Mas há a certeza de que ambos partilhamos o gosto por podermos partir em sentidos diferentes. A diferença pode ser o mais extraordinário ponto de encontro.
Discutir com o zé é rir sobre o facto dos direitos de autor da obra do Ravel terem ficado na mão de uma cabeleireira que o zé martelava com o jeito de uma piada. Não consegui explicar ao zé o que os direitos de autor são. Mas, em boa verdade, há pessoas que nos fazem quase conseguir acreditar que há um fundo de razão nessa fé sem deus que é a dele. Não interessa explicar o que são os direitos de autor a uma pessoa que se dá e nos dá de forma total.
O Direito não honra as excepções da natureza humana. E ver o zé a envelhecer é perceber que há coisas que renascem sempre. Ouvi-lo tocar, por entre o fumo dos cigarros e entre amigos, foi sentir que duas pessoas diferentes podem morar do mesmo lado - do lado em que a liberdade existe para que da diferença nasça aquilo que mais nos aproxima - a entrega.
No fim da noite, despedimo-nos e seguimos sentidos opostos. Com o olhar na mesma direcção - o amanhã.
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