Rewind

domingo, 27 de fevereiro de 2011

avó.

A casa muito quieta no fim de tarde. Os passos adormecidos no chão de madeira pesada. O dia que caía como que tomado por um sono pesado e repentino. Nós os dois - e a porta aberta para o mar imenso da memória. ´
Curioso como me lembras sempre um tempo feliz - o tempo das horas amplas e dos medos a que ainda não conhecíamos o nome. E sempre as tuas mãos e o azul luminoso dos teus olhos.
Ouço-te e vejo como moro no fundo do teu olhar - como o que dizemos e somos um ao outro o acende. Procuro fixar cada instante e guardá-lo com uma avidez que se assemelha muito ao medo. Sempre a memória - essa que habita os retratos e nos mora na voz.
Os dias que morrem longos e felizes com o corpo a viver essa fé inteira que é o amor. Cravo nas palavras que te deixo o que sempre continua comigo num corpo que cresce na espessura dos dias. A vida como uma longa conversa ou como um enorme oceano a que sempre devotamos o mesmo amor.
Eu a desejar secretamente que essa tua vontade de viver não se apague nunca para que me vigies e estejas sempre por perto.
Fomos criados nessa liberdade sem tecto que se chama amor. E a cada tarde que passamos juntos guardo palavras para fintar o mundo e encontrar o sentido que as coisas podem ter.
Levo comigo essas confidências que me revelas com uma inocência clara e pura. E percebo na forma como me desejas para o amanhã - a entrar pela porta e a subir as escadas apressadamente, que o que somos não cabe no tempo. Sabemos ambos que haverá sempre algo por dizer ou mais uma hora que queríamos para deixar dito sempre o mesmo - esse eco aceso no sangue.
Julgo desejarmos os dois o mesmo: o tempo em que havia tempo. Não sei o que se pode pôr no lugar de uma ausência como a que a tua será. E ao recordarmos tudo, ao rirmos da minha infância com o avô e o A. percebo que o caminho foi sempre o mesmo.
Vivo com o medo que põe no amor essa intensidade assustada e volto a ti muitas vezes.
Visito-te todos os dias e, então, percebo - aquilo que guardo comigo é um segredo que partilhamos na soma do tempo. Não se diz, nem se explica.
Cumpro-te nos rituais sempre e o azul do céu assemelha-se, de repente, em tudo ao mar de esperança que os teus olhos me lembrarão sempre.

no fim do tempo.

No fim do tempo, nós.
Voltar ao princípio pelo fim
Descobrir no teu corpo
A mesma promessa
E reconhecer no desejo
A voz acesa da saudade.
RPM

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

made out_joaquim castro caldas.

Importámos da Escócia os tatoos militares, o tecido para o cachecol que utilizamos para as cortinas, o whisky falsificado para acender lareiras e a medicina especializada para os filhos dos burgueses.
Importámos de Inglaterra os monóculos dos marechais, os chuis que vão buscar a walter e disparam na mulher se o porco não estiver assado à hora da novela, o cinismo subtil e os folhetins das mulheres a dias da rainha.
Importámos da Irlanda as meias de senhora para os assaltantes de bancos, uma certa desconfiança pela igreja e o terrorismo rafiné.
Importámos do País de Gales as bolas de rugby para os estudantes ricos – os filhos de vidro do Poder – que fazem uma cadeira por ano.
Importámos de França as críticas dos jornais, os nossos próprios emigrantes, a snobeira dos foyers, as obras completas de Victor Hugo só para encher as estantes, os requintes judeus do Eça de Queiroz e a vida privada da Mireille Mathieu.
Importámos do Mónaco a fuga aos impostos e as crónicas femininas sobre os jogadores de ténis à vez das princesas.
Importámos de Espanha os crimes passionais, as frases das portas dos urinóis, as tintas para o cabelo dos punks, o complexo de guerra civil e eventualmente a boa educação.
Importámos de Andorra os blusões para os fogos postos, as botas de ski para as inundações e o contrabando de soutiens.
Importámos da Alemanha Federal o turismo do Algarve, as contas de cabeça do Sr. ministro das finanças, o chichi dos bordéis de cerveja enlatado e o faro dos cães para a droga.
Importámos da outra Alemanha a celulite das atletas do Ginásio Clube, o arame farpado para os jardins-escolas, a tentação da denúncia, material da I guerra para a tecnologia da tropa e as balas da GNR.
Importámos da Bélgica a inteligência, como toda a gente, a água oxigenada para o cabelo das meninas da caixa dos supermercados, as munições que já não servem nas armas que já ninguém usa e a vida privada do Art Sullivan.
Importámos do Luxemburgo os carros alugados para vir um mês de férias mostrar lá na aldeia que se tem automóvel depois de 11 meses de escravo e depois morrer bêbedo na estrada na viagem de regresso.
Não sei de onde é que importámos as casas de banho do avesso com que se anda a espatifar a paisagem por esse Portugal fora.
Importámos da Suíça o civismo dos árbitros para o Benfica-Sporting, os cravos vermelhos de plástico para os aniversários dos golpes de Estado, a reputação de lava-pratos eficazes, as fortunas pessoais dos funcionários dos penhores e eventualmente a pontualidade.
Importámos de Itália a psicose industrial para usar na agricultura, a corrupção política para usar em pequenas doses e com receita médica, as patilhas até ao queixo, a brilhantina dos empregados da CP, s bólides para os meninos queques espetarem nos rallys, as cuequinhas de cera para tapar o sexo das estátuas nas igrejas e eventualmente o falar de mansinho à saída dos jogos de futebol.
Importámos da Grécia o excesso de sensatez das donas de casa e um certo estado de decomposição do património.
Importámos da Holanda quase todo o hard-core 1º escalão e uma percentagem considerável das vacas da Feira do Ribatejo.
Importámos da Áustria os lugares dos mutilados nos autocarros que não servem para nada porque eles não conseguem entrar nos autocarros e a mania de que é chic chegar atrasado meia hora às estreias de teatro.
Importámos da Dinamarca a mentalidade preocupante dos vídeos e penteados dos anos 80.
Importámos da Suécia o mito da boazona e eventualmente a sobriedade alcoólica ao volante.
Importámos da Noruega o infiel amigo e só não importámos nada da Finlândia porque não há lá nada que interesse à nossa amena temperatura.
Importámos da Rússia as medalhas para condecorar os artistas que atinjam uma idónea senilidade, as histórias da Sibéria para massacrar as crianças, os efeitos psicológicos do imobilismo dos jogos de xadrez, os boatos da morte dos governantes e a prepotência dos canhões.
Importámos dos outros países de Leste o sofrimento militar para aliviar o sado-masoquismo civil.
Importámos de Marrocos a grande pedra.
Importámos do cansaço de guerra ultramarino o 25 de Abril sobre o joelho e as fardas para os teenagers se mascararem.
A única coisa relevante que importámos das antigas colónias foi um canibal de Cabo Verde que comeu o fígado de uma criança nos arredores de Lisboa.
Importámos dos países árabes o asseio das retretes dos lugares públicos.
Importámos da Índia um documentário sobre a nossa épica debandada.
Importámos do Japão os pacotinhos de Vinho do Porto em pó para beber nos aviões, os gritinhos das jogadoras de voley, o turismo de massas do hotel ao hotel e do hotel para o hotel, os filmes a mais e o comer a horas mesmo sem fome.
Importámos da América Latina o espectáculo dos bancos dos hospitais, a coca dos barões, o hábito prático de levar a cozinha e a mobília da sala para a praia, partidos políticos do século passado e slogans demagógicos ou inconsequentes.
Somos exportados pela China em Macau onde não temos sorte nenhuma ao jogo.
Importámos do Brasil o dia-a-dia ocioso e fútil das funcionárias do Estado, a língua de trapos das manicures, as brocas dos dentistas, o mau hálito das meninas dos telefones, as sopeiras da TV Globo, a alegria à força e uma dor de cotovelo incestuosa.
E no fim deste estendal ainda fomos obrigados a importar a ingerência externa dos computadores americanos que nos ensinam a lidar com esta gigantesca salada fria de Cultura que não é nossa e que talvez até nos convenha agora, aos poucochinhos, começar a exportar.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

parva que sou - Deolinda @ Coliseu do Porto, 23.01.11.

filmes.






















boca.

Como se tivessem boca
Os dias que nascem na janela
frente ao mar
Querer beijá-los
Como à memória de areia do teu corpo
E estender-lhe os braços
Como fazem as ondas lá no fundo
Como se tivessem boca
E fosse o teu sorriso tão amplo e luminoso
Como esta manhã de sol
E juntos vivêssemos mais um dia
Como se tivessem boca
Os dias que deslizam na janela assim aberta
E fosse essa boca a tua
Mar de desejo e de acalmia
Descanso da espuma nas enseadas da saudade
Que o desejo fez grande para ti.
RPM.