Falar de mim será falar sempre dos outros - desses com que pude partilhar mais do que a soma dos dias, toda a espessura das horas e do que se nos imprime na pele depois delas.
A memória é sempre uma forma de nos agasalharmos nos outros, de os cumprirmos para lá das ausências que são como feridas que o tempo vai amaciando.
Falar de mim será falar sempre da minha família - desse chegar e ter uma vontade súbita de filtrar o ruído para escutar o som sereno dessa acalmia que vem do calor dos corpos num longo abraço. Vivo muito de perto com a voz daqueles que me pertencem e não cheguei a conhecer e que moram no fundo das molduras das cómodas e das mesas de pé de galo. Vivo com aqueles a quem conheci e a quem soube o ser e a vontade sempre por perto - como numa longa simbiose que o amor sabe ser.
Um destes dias tive uma avó que nos quis apenas dizer que nos amava porque ainda não nos tinha dito isso naquele dia. E aquilo foi como um trunfo guardado dentro de mim contra o cimento de tantas mágoas e exigências do mundo.
E fez-me pensar, com esse enlevo de um carinho assumido, na quantidade de histórias que ouvi nas longas conversas que desenharam uma cumplicidade eterna entre mim e aqueles que me acompanham do lado de lá do caminho, por entre a poeira da estrada.
Tive um avô que escreveu cartas de amor à minha avó e isso, por muito que se não perceba, deixa em nós as marcas como as que toda a entrega genuína pode deixar.
Conheci pelas palavras o retrato perfeito de um bisavô materno com quem a minha mãe discutia política e conversava, saboreando um cigarro repousante, na sua juventude; soube de uns trisavós maternos que passavam a Invernia na Madeira e a quem certamente fui buscar o amor pelo mar. Conheci as histórias dessas mesas largas e fartas de casas escondidas e semeadas no fundo de vales verdejantes e que, nos meses frios, parecem transpirar uma melancolia de sombra e névoa húmida.
Ainda hoje os linhos e os bordados enfeitam as mesmas mesas em dias de muito rumor e luz. Aí se percebe que a saudade borda com uma agulha bem fina o nome dos outros no nosso peito. A memória e os objectos que lhe dão corpo são a nossa forma de os fazer nosso chão e fintar as agruras da vida.
Soube de uma trisavó materna apaixonada pelos cavalos que tinha e dos Zaires e Lords que corriam a casa com os seus pêlos compridos e lustrosos de cães de caça. Ouvi tudo na voz dos que me contam esses pequenos instantes que a surpresa, a adoração, o sofrimento imprimiram na tela da memória dos meus pais e dos meus avós.
Os laços criam-se dessa proximidade com a memória, ao ponto de sentirmos desaguar em nós uma encruzilhada de direcções e sentidos. Como dizia o meu bisavô paterno, referindo os ingleses, "os filhos não devem ter princípios muito felizes." E com pequenas verdades lapidares deste tipo, sentimo-nos ligados, em cada momento, a alguém que, como humano, endereçou com as palavras o tempêro que os factos precisam.
Outro dia, a minha avó paterna disse ter saudades do tempo da juventude - esse tempo que associa ao Eça e ao Camilo e ao pai, cuja memória ainda lhe embacia os olhos de um azul que herdou dele. E conheço nas referências e nas atitudes uma elegância rara de ver.
Recordo os longos passeios pelos campos com o meu avô, por entre vinhas e horas sonolentas e que embalam o corpo. O meu avô vivia com a natureza e a terra uma espécie de fé que nunca o atraiçoou. Vejo que talvez essa educação perto da terra e dos seus ciclos empresta ao carácter uma certa firmeza que a vida morna de hoje em dia não atinge. Tenho saudades dele e dos longos dias em que podia correr pelos campos com ele por perto. São instantes com uma moldura de sol e calor que não vou esquecer.
Guardamos fotografias de todos os momentos - às vezes, encontro alguém da família a procurar nesses álbuns a imagem física de um tempo que o tamanho dos corpos denuncia ter terminado.
É tão evidente esse laço de parentesco com a Agustina pelo lado paterno - laço que se manifesta nas feições de tias-avós e na imagem da minha bisavó. Curioso ser a autora favorita do A. - é-o porque muitas daquelas personagens e lugares, vivências e aventuras foram as nossas e da minha família.
Tive um tio-avô que sonhou com a liberdade e transformou a vida e as palavras dele num manifesto que fez cumprir. Hoje, apesar das diferenças que nos separam, sei que eu e ele como, de resto, todos nós, sabemos que há um lugar essencial à admiração e entusiamo pela diferença.
Não se faz pedidos ao amor - o amor é um instinto como um par de braços, de repente, aberto para acolher.
Falamos todos muito - nunca nos vai chegar o tempo porque não nos sobra a vida. Estas pessoas de quem falo usaram sempre a palavra com esse tom de carinho que fez uma baínha mais funda no vinco dos laços. Tudo se discute e conversa e com eles e os meus pais. percebi que devemos ser do tempo em que vivemos. E eles acompanharam-me sempre - o tempo não enruga a convicção de que pertencemos a um lugar onde devemos acorrer sempre.
A minha vida, a minha casa e a minha família são como uma arca em que todos somos como Noé tentando salvar do dilúvio a adoração que guardamos uns aos outros.
Não sei viver sem esse superlativo do carácter e do pitoresco das histórias que as numerosas jóias e objectos guardam.
Os livros circulam assinados por cada um de nós que se faz mais quando os lê. Herdei da minha mãe esse gosto compulsivo pelos livros. Detecto em quem com eles vive uma relação umbilical esse desejo de conhecer a vida; de a deixar revelar-se por passagens e retratos de pessoas que podiam ser nós ou que nos foram no nosso contrário.
Gosto desse tom doce e próximo com que a valsa da memória me brinda com tantos episódios.
Fomos cobertos a açúcar queimado como o do leite creme da minha Gó.
Tive pessoas que me fizeram nascer no coração um apelo que vem do sangue que elas nos fizeram nascer porque os conhecemos e elas ficaram.
Aprendi com a minha família que o poder é o maior teste ao carácter das pessoas. E descubro gestos de enorme generosidade por parte de pessoas que vestiram com o silêncio esses gestos sinceros. A verdade, certas vezes, radica mais pura no que justamente se não diz.
Como uma grande sala com vista para as japoneiras plantadas pelas bisavós, somos unidos na pluralidade. Queremos o mesmo, mas queremo-lo de forma diferente.
Talvez seja essa a grande lição da literatura acerca do que somos - nada se fecha que nos diga respeito e o ar que insuflamos para aclarar as ideias - ou arejar a dita sala - tem origem em pontos distantes e opostos.
Deixa-se entrar o ar e pensa-se que é porque ele sopra que podemos ser felizes.
Por isso, há dias em que entramos para revisitar aqueles de quem gostamos. Curar-lhes as feridas e perdoar-lhes os erros.
O que queremos é justamente isso maior do que nós e do que o tempo que passa - que os nossos nomes continuem gravados juntos no peito de cada um. E que a saudade sirva, afinal, para os sublinhar com caneta de tinta permanente. Do lado de dentro.
2 comentários:
Sublime, como sempre!Parabéns!
Perfeito!!
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