Nunca houve Natal sem a nossa Gó - a Gó dos doces, das travessas imensas e saborosas, das mesas bem postas, do sorriso doce e olhar iluminado.
Nunca houve Natal sem as suas mãos mergulhadas com carinho nas receitas, na azáfama de encenar o espectáculo dessas noites longas e felizes.
Nunca houve vida feliz sem o condão dos seus braços sempre abertos, da promessa que guardou no peito - essa que a põe feliz quando reencontra a minha avó. São como duas amigas - "minha senhora" é a forma da Gó guardar o seu lugar, esse que é só dela, esse que lhe diz onde pertence que é no meio de nós, sorridente e de olhar matreiro e bondoso.
Todos sentados numa mesa - eu, encantado por a ouvir falar desse tempo em que aquela começou a ser a sua casa - a casa onde, mais tarde, corri pelos corredores a chamar por ela, pelos meus avós, pela minha família onde ela firmou lugar bem fundo.
Este tempo é o tempo das mesas preparadas com carinho, da cumplicidade com que desabafamos as nossas coisas como dois bons amigos - vejo que fica feliz quando lhe falo com a paixão que nutro presa no eco das palavras e na acalmia do corpo.
Chegam as suas irmãs - um colégio de mulheres gratas, humildes e bondosas. Todas sorriem quando nos vêem na mesa - sabem há muito do amor que lhe guardamos, à nossa Gó das missas a um Deus bondoso e de braços enormes e afago terno.
A saudade que lhe tenho nunca morre - guardo- a como uma espécie de prova da resistência das coisas, da sinceridade dos afectos e da firmeza da lealdade.
Tudo muito simples - aquelas mulheres unidas desde um tempo que principiou antes de mim, as saudades que guardam uma da outra, o chá que bebem, gracejando ao lembrar o tempo que foi o da conquista, da luta, das crianças, da criação desse laço imaterial maior do que a vida.
Vivo para guardar isto cá dentro - agradecer a tempo, abraçar a tempo, rir a tempo e descobrir o prazer imenso dessas coisas simples que uma tarde todos juntos nos pode dar.
A Gó sabe do amor que tenho pelos meus avós - viu-o, acarinhou-o e orgulhou-se de nós, sempre. E sabe aquele que guardo por ela - a minha família é também ela com o seu carácter erguido de grandes pedras, da fé que a move de encontro a mim e ao A..
Sei que reza por mim, que nos reclama como um pouco seus também, sabendo que nunca a deixaremos.
Observar e sentir que a vida só pode ser isto - o bailado quente de um chá, a minha família por perto, rir com vontade ao saber que os meus lhe iluminam o olhar como se fossem os dela.
Não conheço maior exemplo de gratidão, de fé como um véu de luz quente que nos faz o abrigo uns dos outros no caminho.
Este é o tempo dela - o que nós somos não acontece da mesma forma, se ela não estiver por perto, se não lhe apanhar no olhar esse sorriso que me envia sob a forma dessa certeza doce de que fica.
Nunca houve um Natal sem a nossa Gó - a Gó das conversas pela noite fora sobre a infância do meu pai, o meu avô, a minha avó e a minha mãe e o A.
Nunca houve vida sem ela - sem esse bocado mais que conseguimos ser só porque a temos, porque nos guarda com o verde dos seus olhos e os desejos sinceros do seu coração.
O tempo melhor da minha vida é este - o que passo com as pessoas que me dão forma e espessura aos dias, que me fizeram nutrir pela vida um fascínio que nasceu de termos partilhado todos o caminho.
Enquanto a tarde passa, descubro que não saberei nunca viver sem isso - sem essa sensação de encantamento, de fascínio, de gratidão e felicidade que me nasce de ter essas pessoas, cuja missão foi tão maior, tão luminosa, mas humilde.
O chá, os doces, as palavras, os nomes que pronunciamos juntos - é uma canção antiga que os nossos corações aprenderam depois da valsa constante de tardes, de dias e de uma vida toda vivida para isto - as coisas simples, as maiores e as mais puras.
Não há tempo melhor do que aquele que não queremos que acabe - sabe-nos bem a vida como um caminho que nunca foi solitário, que nunca foi da solidão.
Há bocados de luz na nossa vida - pessoas que nos aquecem e nos embalam o peito com o ritmo constante do que são e do que fazem por nós.
O tempo das gargalhadas, das tardes quentes em que se matavam galinhas e eu e o A. as queríamos ver sem cabeça, as tardes no jardim em flor depois de lanches abundantes e correrias de criança. O tempo em que as pessoas nos começavam a viciar nessa forma leve e inconsciente de cumprir hábitos, de repisar lugares, de não esquecer nomes nem gestos, de acariciar a memória e o poder consolador que esta transporta.
O poder não serve para afastar as pessoas - serve para as unir num qualquer desígnio comum, para as fazer sublimar a circunstância e caminhar juntas numa direcção idêntica.
Reencontro esse Deus bondoso na felicidade com que a minha avó se apressa a abraçar a Gó, na rapidez com que as duas percorrem a nossa história, lembrando-se, cada uma, sempre, das qualidades e gestos da outra.
O tempo na minha vida será sempre este - o da roupa branca estendida sobre um dia quente - um lençol de luz que esvoaça, enquanto corro:
"- Gó!"
Acabo por encontrá-la sempre
"- Estou aqui, menino, estou aqui."
E voltará sempre o tempo em que a minha família se abriu para acolher aquela que fez dela um lugar mais bonito para morar.
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