Nasci para uma vida que te tinha dentro como um presente que surpreende a mais exigente das crianças. Tive-te sempre, como uma dessas coisas que nos acontecem e passamos a vida toda a tentar perceber o que fizemos para as merecer.
És a minha Gó, a mulher do olhar fundo verde musgo, a mulher dos doces e da comida suculenta, a mulher das paixões, do sacríficio, dos rituais e da fé.
A cúmplice, sempre a cúmplice malandra com um olhar cravado de uma esperteza saudável e audaz. A companheira dos avós, sempre lhes agradecendo o que te deram, ficando, ouvindo e amando cada um de nós como se bocados de ti fôssemos todos.
Cresci rodeado dessa tua fé que nos transmitias mais através do que eras, do que sempre foste - certa e robusta, sólida como a maior das rochas.
Penso que foi sobre a pedra do que tu sempre foste que fui erguendo a minha fé - uma fé sem dogmas, como uma janela que se abre sempre numa busca súbita de luz que abafe os espaços.
Não me imagino sem ti - essa gargalhada fácil quando corríamos à tua volta para ir contigo à missa, para ver matar as galinhas, para ouvir mais uma história do tempo da juventude dos avós que também foi a tua.
Nasci para me fazer melhor depois da passagem dos teus braços, do som terno das tuas palavras simples e sinceras, do teu exemplo.
Cresci abrigado na sombra fresca da tua dedicação, da tua constância, dos teus modos pacientes e observadores. Aprendi a respeitar-te mais quando a tua simplicidade me fazia sentir pequeno, quando o que tu eras me ensinava aos sonhos a humildade que é justamente quando, de verdade, se começa a sonhar.
Lembro-me dessa língua afiada que se soltava quando ouvias uma injustiça, quando te chocavam as histórias da miséria de outras pessoas, quando agradecias sempre a tua vida, sem mais. Agradecer as pessoas, o que elas foram e o que delas nos fica no fim de tudo.
De ti ficou-me um vício na alma de trazer o teu nome preso na baínha da pele, de procurar sempre o teu olhar, saborear os teus doces ou ouvir a tua história.
Vejo retratos desses teus tempos de governanta, das temporadas na praia com primos e sobrinhos que enchiam a tua rotina de ruído e trabalho.
Vejo-te sempre feliz - esse olhar de jovem que a neve que nasce dos teus cabelos não consegue nunca apagar.
Vejo como nunca te esquecem as palavras do avô - guardas dele a tua saudade que brota subtil nas contas que marejam os teus olhos se te falamos dele.
O A. e eu, os teus favoritos, nesses tempos em que íamos pelo meio das tílias a conversar e a habituar a alma ao baloiço do conforto e da cumplicidade.
Foste-me uma ampliação do possível, uma prova do impossível, um testemunho do indizível.
Nada nos dirá, nunca. Nem haverá palavras que cheguem - que cheguem lá - a esse sítio onde cada impulso confirma a solidez do que se forjou entre nós.
És uma das minhas pessoas - essas que guardo dentro de mim para me lembrar de ser bom, para embalar as dúvidas e continuar.
Espero na vida, secretamente, ser metade do que és. E, como num capricho egoísta, continuar a ter de ti isso que nos dás. Isso a que chamamos amor. E é, fica a saber, dos melhores que já tive.
Parabéns, Gózinha.
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