Rewind

terça-feira, 8 de maio de 2012

Ao A.

O A. nasceu antes de mim, num dia que se disse fazer feliz a todos. Nasceu antes de mim, quase a tornar a minha primeira imagem do mundo, a dele. À espera. Apenas esperando por mim como que a dizer que uma qualquer coisa boa vai principiar em breve ou que alguma agrura será passado na próxima dobra do tempo.
A minha vida começou com o A. à cabeça dos dias, com o A. a habitar esse espaço que se chama sangue e que nos corre nas pontas dos dedos com que nos içamos acima da fatalidade e finitude das coisas.
O A. foi a pedra de todas as construções ou a areia de todos os castelos que a infância ergueu no colo da ingenuidade quando fomos crianças. Nascemos presos no tempo de cada um - e soubemos, sempre, em cada dia, que apenas essa prisão nos deu altura aos sonhos, nos deu espessura ao verbo e longe ao olhar.
Há uma violência secreta em sermos outro na nossa pele, em termos na nossa vida uma outra que queremos habitar, que queremos percorrer e chamar nossa.
O A. foi esse diálogo sem censura, essa cumplicidade espontânea que é como a luz que inunda salas inteiras para tornar o branco das paredes um espelho fundo e claro.
E os olhos do A. foram sempre do tamanho do dentro - são os olhos que vão dentro e veêm o que o instinto acaba por ajudar a explicar.
Todo o amor sanguíneo e fraternal é uma denúncia - somos nítidos aos olhos de quem nos guarda o mapa na carne e nos escuta as ideias em silêncio.
O A. tem no génio o avô que eu e ele perdemos e que tinha nele o seu cúmplice maior. O A. guarda de mim essas noites de conversa em Lagos, essas caminhadas numa Meia Praia de ancas roliças e beijadas constantemente por um vento agudo que se insinua.
O A. guarda as matanças das galinhas, os livros da Mãe que cirandam pela casa como caixinhas com o eco quente do familiar.
O A. é a recordação mais nítida das vindimas e das ribanceiras, dos cavalos e dos bocados de vida mais felizes que tenho.
Do A. são as palavras mais finas como punhais - sempre na verdade, sempre no mesmo caminho como um amigo do outro lado da estrada - o pó amarelo do calor a pairar no ar e a cair nos tanques como um náufrago fatigado.
O A. é o fundo da minha vida - como o céu que se ergue para abençoar os dias e dar tecto aos homens e aos sonhos.
O A. é aquela coisa só minha que não me torna egoísta - do A. serão sempre as noites em que o mundo continua para lá da vidraça e nós permanecemos - quase quietos, quase esquecidos do mundo e imersos no significado que lemos na vida um do outro.
Em mim, a verdade tornou-se uma coisa diferente de mim mesmo - é sempre isso mais que guardo dos outros por respeito, é sempre esse desvio que, levando para longe, me põe no olhar a atenção da distância.
O A. é essa solidão sem dor - esse ter alguém, cuja vida se nos oferece como uma promessa que o mundo não pode quebrar, que nós mesmos não podemos violar porque, sem ela, nada da vida nos restaria para viver.
Nasce-se sempre mais livre quando não se nasce sozinho - a liberdade amplia-se justamente nessa outra voz que nos habituamos a escutar mais fundo do que a nossa.
É-se infinitamente maior nessa partilha da dúvida, do encanto e da desilusão. É-se absoluto quando nada o é - e é isso que se ergue como o nosso pequeno milagre, a nossa pequena igreja que tem como altar, o colo daqueles que ficaram em nós.
O A. é o adversário que deixamos ganhar, que queremos que ganhe para serem nossas as lições que nos rebaptizam a esperança e esteiam a convicção.
Não há maior medida que o A. - mesmo as palavras parecem pinceladas baças e vidros turvos quando tudo fica apenas inteiro no silêncio.
Aí, no ventre quieto do mundo - nesse abafo quente que é quase como o início, as coisas tomam a ordem que sempre tiveram - ouvem-se as correntes que o tempo fundiu juntas e que nos trazem presos nos sonhos do outro.
Fomos dados à vida de cada um como cúmplices que vão cometer o crime maior - esse, de desafiar o tempo, de semear o sonho na terra estéril do fim, de almejar ser pedra num regato pequeno e feliz.
Corríamos nas alamedas de tílias com gargalhadas que faziam o azul dos olhos da Avó uma fogueira que estalava.
Falámos com todos, sempre muito. Rimos sempre muito e fomos ensinados nessa valsa de um amor que não se sabe que se aprende - somos atraídos para ela como um vício, um arrepio de pele que nos diz que estamos vivos, que somos inteiros.
O A. é a minha vida depois de mim, apesar de mim - um outro eu que vejo cumprir-se com outro corpo, com outros sonhos que posso fazer meus.
O A. foi a vida do tamanho do sonho. Esse que, desde o começo, nos pôs nos dois, o apelo um do outro, para lá de tudo.