"The only way of catching a train I have ever discovered is to miss the train before." Chesterton (1874 -1936)
Rewind
sábado, 23 de junho de 2012
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Mamã,
Escreves com os dedos compridos, em qualquer folha e em lugares onde sentes que as palavras são subitamente o caminho. O cigarro tão pensativo quanto tu com o fumo a balouçar no ar leve que corre num murmúrio suave. Decorei-te assim: os olhos cativos de algum desejo, de uma ideia, de uma qualquer cumplicidade com a humanidade das coisas.
É isso que guardarei de ti sempre - a humanidade que me fizeste descobrir em tudo - no cheiro de um livro que alguém pega numa noite mais funda, no sabor que fica nos lábios quando damos um beijo com vontade de morder tanto quanto nos rói a ternura que sentimos.
Revelaste-me a humanidade das pequenas coisas, dessas pequenas coisas que se vão convertendo num antídoto contra o medo e o terreno onde brota a esperança.
Ficou-me de ti, malandra, essa sedução pelos pequenos nadas que provam a presença dos outros - vem-me à memória um sorriso teu, vejo-te passeando serena na cal da areia de uma praia qualquer. Não, da nossa Meia Praia como uma grande planície de longos passeios em que nos confrontamos para nos amarmos mais, onde nos descobrimos cúmplices do nosso crime de repetirmos os corpos na corrente dos dias sem cansaço, sem outra dor afinal que não a de um amor que tentamos ajeitar cá dentro, arrumar numa medida que não lhe serve, que o não quer.
Acho que temos um amor perigoso - desses que desafinam, desses que nos vestem de uma serenidade agitada - essa, sim, que nos nasce do absoluto encantamento que fica depois de uma noite de música na varanda, com os pés com uma baínha de calor dos dias de sol.
Todo o amor é uma forma de violência - em cada rendição, depois de cada cigarro e palavra lançados para a noite, fica-nos essa súbita vontade de aconchego nos braços um do outro.
Aprendi contigo a humanidade das coisas - essa segunda pele que fica em tudo depois de nós. Nada mais é igual. Fica presa em tudo a luz, a cratera do impacto e as sequelas da colisão. Ficamos nós como prova última de nós mesmos. Capazes dessa forma sublime de nos sentirmos muito para lá das ausências, de nos querermos muito para lá das feridas com que o mundo nos inicia e nos baptiza.
Só queria dizer que me ensinaste aos olhos um outro ver - como num sequestro aprendi a viver dentro das coisas - dentro das casas de sempre, dentro das linhas de cada página, lidas e relidas, dentro das mesmas pessoas, dentro dessa catedral de luz que é a memória.
Aprendi a gostar de estar nos mesmos sítios, pertencer a algum lugar, honrar com os rituais - a nossa vingança sobre a morte - aqueles que nos mostraram o mundo. Reviver é como tornar a captar essa avalanche de espanto que cada novidade traz.
Nas crianças o espanto é quase uma promessa da imortalidade das coisas, dessa humildade de ter no olhar o amor às coisas simples, o amor propriamente dito.
Só com a memória há uma gratidão que se agiganta até ao infinito - e a cada lembrança sentimos, de novo, o gelo do espanto que sempre nos causam a bondade, o perdão, os erros desses outros que sabem da vida o mesmo que nós: que fomos dados uns aos outros e que ficamos a morar na pele de quem prendemos na jornada.
De ti ficou-me esse reparar no que fica em tudo depois de nós - como se nos dessem a possibilidade de escrever uma narrativa que se prolonga muito para lá de nós, que se infiltra na pele como um beijo para nos adoçar o sangue, nos bordar de fé a sombra do caminho.
Aprendi contigo esse encantamento pelos silêncios do mundo, esse silvar sereno da memória que se nos revela como um presente que o passado nos traz.
Não fiquei o mesmo depois de ti - da tua pele nasceu a minha. E, com o tempo, sinto que ainda escreves cá dentro com essa tinta permanente de que gostas tanto, sempre que me lembro desses pequenos nadas que enchem as páginas da minha vida.
Principio por dizer "obrigado" que me parece uma palavra bonita e que vai bem com o mais luminoso dos amores.
terça-feira, 19 de junho de 2012
Vovó
De novo deitado no teu colo - a minha cabeça com as tuas mãos desenhando linhas de ternura no louro dos meus cabelos como o teu. A vida só principia depois disto - quando a família nasce do chão dos dias para dar ao ar do meu peito um caminho mais fundo e mais sereno.
Vou até ti como num lampejo do instinto - ainda agora, enquanto escrevo, vejo da janela a tua casa e o seu jardim silencioso como um corredor em que já passou gente.
Vejo essa fachada que se tornou um símbolo da tua história - semeada de recordações, de um areal infinito de objectos de família: o relógio de capela do teu tio-avô, a caixa de prata de rapé do pai do avô, os retratos, os móveis, a roupa dos teus bebés guardada ainda nas gavetas, a jarra que recebeste do avô quando o primeiro dente do meu pai nasceu, os linhos, os cristais - a morada com que sempre sonhaste quando, ainda nova, dizias às criadas que querias uma casa bonita.
Avó, é bonito o sítio que é o teu - esse jardim de onde ainda ontem colhi flores para tas pôr na sala grande, essa casa onde as noites foram tuas cúmplices e do avô nesse querer sempre mais, nesse escudar o lirismo da alma com a força dos gestos, da vontade e dos instintos.
Espreito-te o azul dos olhos enquanto desabafas comigo - são como pérolas embrulhadas de um véu azul brilhante. São a luz que dizes que eu e o A. acendemos quando chegamos.
Sabes sempre porque fico - ficar foi a primeira palavra que o teu corpo me ensinou, me pôs dentro quando me seguraste pela primeira vez. Devo ter sorrido, pela certa.
Ainda hoje sorrio só de te ver absolutamente apaixonada pela vida nesses teus vestidos de seda, nesse teu calcorrear os corredores da tua casa como em busca de alguém que te chama. As palavras com que os teus filhos te chamam - mamã ou eu e o A. - vovó são para ti uma missão que te justificou o ser e te pôs sol na janela do sonho.
Falo-te e as horas passam - a cada passo encontro mais uma coisa que não sabia e agradeço mais este dia, só mais este bocadinho que ajudou a talhar mais fundo o teu nome na minha lembrança.
A cada partilha encontro mais uma razão para te amar estupidamente - para ter uma certeza maior e feita de um ferro espesso de que não saberei ser o mesmo sem ti - sem tudo isso que me coseu na carne um conforto que me fez melhor pessoa, que me fez doer menos o mundo.
Falas-me da Amélia - essa criada que quiseste que fosse dormir para o teu quarto numa cama pequena posta para ela quando as tuas irmãs começaram a casar. Essa Amélia que te bordou uma toalha para que te lembrasses dela um dia e te lavava os pézinhos no tanque e te levava ao colo para dentro quando corrias, menina e leve, pelo jardim de que o teu pai tanto gostava.
Falas-me desse teu pai, cujo roubo atenuas com um chamamento perpétuo - ele vive nas tuas feições e nesse fascinio que é a forma com que os homens se fazem perenes no coração das mulheres.
Olho-te os dedos enormes e finos - estás mais magra, reparo. Explico-te e peço-te que comas, que vivas sobretudo por mim e pelo A. porque tínhamos um acordo de que chegarias aos cem.
E dizes-me: "Quem me dera ver os vossos filhos!"
Cá dentro rezo para tenham de ti essa destreza de chamar sua sempre a vida - reinventá-la, aconchegar os corpos e as dores na carne dos nossos e continuar.
A criada espreita-nos da cozinha - ri-se muito quando por lá ando contigo e com o A. E com esse rafeiro rasteiro de olhar doce que acolheste na tua infinita simpatia pela surpresa e o mistério da bondade dos bichos.
Estavas grávida de uma das tuas meninas - a primeira - e tinhas um gatinho branco. Um dia, como me contas a sorrir, pegaste-lhe e disseste: "Quem me dera que a pequena tenha uns olhos azuis como estes." E teve-os.
Somos uma raça de olhos azuis que se repetem a lembrar esse sangue francês que o avô do teu pai ou até alguém antes nos meteu no ser.
Falo-te da minha vida, de mim - com esse despudor que nos retira desses modelos imaginados de um lirismo decorado e triste. Excedemos a escala, alteramos os limites porque apenas nos queremos. Sempre e muito.
Digo-te que te perderei sempre cedo - irás sem que tenha roubado ao silêncio mais uma história encantadora da tua infância de ouro, do teu casamento de uma vida, desse amparo sólido que és e que a todos amou com uma medida que a razão desconhece.
Eu e o A. falamos de ti todos os dias, entre nós, com a mãe, a família - espantados, emocionados por Deus ter dado um nome mais fundo e mais verdadeiro às coisas depois de ti.
Procurar-te-ei sempre - a minha Milinha dos olhos azuis, a Milinha conversadora e brutalmente inteligente que fez de mim, desde pequenino, alguém que nunca quis crescer demais. Só para nunca deixar de caber no teu abraço de mulher pequenina e sorridente.
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