C. mora num país triste, segundo dizem. Isto de os países serem tristes não a preocupa muito. Alguns gostam de dizer que existem países tristes, países desmotivados e países de não sei quantos feitios e qualidades como se se encontrassem na mercearia da esquina.
Não existem países tristes - existem, sim, pessoas - esses seres dotados dessa estranha capacidade de emoções e sentimentos.
C. mora num país - triste é a vida dela e o resto é treta, se me permitem. A vida dela existe num intervalo entre viagens de autocarro, entre a precariedade do trabalho que arranjou para tapar o buraco do outro trabalho precário que já não chega. A vida é o que existe depois das dores no corpo por se desdobrar em três para acorrer aos três filhos pequenos - a mãe não lhes falta, mesmo que à mãe tudo falte.
C. vive num país como uma gaiola enfeitada - não faltam estradas como tentáculos da modernidade, não faltam catedrais de betão armado, computadores magalhães, bancos que precisam de ajuda, reformados indignados, presidentes da república que comem de boca aberta, enquanto o dinheiro não lhes chega, coitadinhos.
E C. tudo ouve, tudo engole como fragmentos que formam na sua cabeça esgotada um ruído - um ruído como um eco que lhe diz que é muda, que não tem voz e que está sozinha.
C. vive num país em que o suposto asseio da coisa pública se converteu e se reduziu a uma manada de engravatados ensinados por uma cartilha estéril, inútil e cheia de lugares comuns. As pessoas não existem. Nada do que elas são existe.
A lei tornou-se um caudal de excepções previstas sempre para os mesmos - aqueles que se refastelam com as excepções aos cortes nas remunerações, aqueles que fazem da justiça uma valsa de atrasos, de manobras, um espectáculo degradante.
Há no país de C. um ex-banqueiro que diz que os bancos têm que ter lucros, que há que inventá-los e se soubesse no que ia dar o pântano que criou não se metia nisso. E diz enquanto come, enquanto a Assembleia da República o escuta. Mas o país já não se espanta. Para C., como para muitos portugueses a vida não mora aí. A vida é o sofrimento de quase não poder ir trabalhar porque não se paga o passe que subiu, a vida é o cadáver de uma esperança que já não mora mais aqui.
C. já não se espanta porque nunca acreditou nas promessas de ninguém. Os políticos são quase como uns vendedores que bajulam ou uns religiosos chatos como tudo que não nos largam porque nos querem alguma coisa.
E C. já não cai nisso - vive no mundo onde as pessoas nunca deixam de ter nome, ouve as histórias onde o pulso se sente bater cada vez menos.
C. queria um país em que os filhos pudessem estudar, em que as escolas fossem uma janela aberta para uma vida melhor. A C. não lhe interessam ecos distantes de um mundo que não percebe - os pobres, os miseráveis vivem num mundo em que querer viver, em que querer ir ao cinema, em que querer comer mais um pouco tem consequências.
Só nesse universo paralelo de tratantes engomadinhos tudo parece pairar sem sanção, os actos parecem não se inscrever para logo se tornarem num rumor tímido e logo esquecido.
C. não quer saber de quotas para as mulheres na política. Ela queria era a sua quota de leite, de comida, de dignidade, de luz eléctrica ou água canalizada que não tem.
Os pobres e os miseráveis não têm género, não têm direito a essas aspirações burguesas da igualdade e coisas que tais.
A vida de C. é uma corda na garganta - um equilíbrio ténue que quase finda quando alguém adoece, quando chove muito, quando o autocarro se atrasa, quando o médico falta ou quando a roupa já não serve.
C. não sabe mas tem que haver quem lho diga - pobreza não é vocação. E os pobres não dependem, na sua relação com o Estado, de um favor ou de caridade. A ajuda em situações como esta é um direito - um direito que não pode ser restringido em nome de pântanos financeiros, de reformas para as quais nunca se descontou, em nome de estádios de futebol vazios, de TGV's e pareceres milionários.
C. não quer que os filhos sejam como esse tal de Relvas - quer que acabem cursos, quer que digam a verdade, porque a honestidade, surpreendam-se certas alminhas incautas, também é virtude dos pobres.
C. não quer saber de procuradoras que gritam, borradas de maquilhagem e quase alienadas, que não há corrupção no seu país. Ela sabe que há, que existe em quase todos os serviços aonde foi e onde lhe disseram, entre dentes, que quem tem uma cunha tem tudo.
C. não quer um país em que faltem medicamentos para doenças graves, em que os moribundos não sejam assistidos porque não há camas ou sejam atirados para valas comuns dos tempos modernos, porque se acabou com o subsídio por morte.
C. sobrevive - a vida nunca foi fácil - a modernidade do país, de aeroportos megalómanos e de elefantes brancos nunca chegou ali. Acomoda-se mais um desgosto, vive-se conformado com a ideia grotesca de que a vida das pessoas como ela importa cada vez menos.
Os autocarros entram em greve e as ruas enchem-se. C. não foi às manifestações porque não pode perder as horas de trabalho. Mas C. vê que um mar de gente se estende nas ruas, quando liga a televisão. C. ouve discussões sobre a Segurança Social com uns tecnocratas atrofiadinhos a esgrimir argumentos como massagens no próprio ego.
C. tem vergonha por esse país. E tem pena das pessoas que ouve. Consegue ter pena daqueles que ouve, sem se lembrar de que está pior, de que ficará pior, certamente.
C. está estourada - os cabelos brancos, o corpo moído da chuva e dos quilómetros que ainda teve que andar porque a linha do autocarro foi suprimida. C. ouve e tem pena. Tem pena pelos filhos, pena porque o país é como um ruído enorme. E, ao fundo, sorriem ministros que entoam letras de músicas de revoluções que nunca fariam.
C. não sabe quem é o ministro como ele também não sabe quem é C. E assim, enquanto o corpo pede descanso, C. acredita que as coisas ficarão melhores. Têm de ficar.
Como diz a música: " o povo é quem mais ordena..." E isso soa-lhe bem.