Rewind

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Avô,

às vezes, já não ter o teu abraço é como nunca chegar a casa
as paredes erguem-se mas o telhado dos teus braços não está lá
nos corredores, a tua ausência intacta é como um pássaro aflito 
que mesmo as janelas abertas não deixam mais voar

às vezes, o fio do horizonte seca-me no fundo dos olhos
a saudade é como um segredo correndo no mar das minhas veias
em silêncio, estendo na varanda do meu peito todas as memórias
e imagino que andarás esquecido de nós nalgum jardim

às vezes, é quando durmo que corro feliz a acordar-te
a tua voz é a mão que agarra a minha no caminho
levanta-te, Avô, vem ver
o sorriso doce e infinito do poente

às vezes, ainda escrevo cartas que guardo para ti
ainda te digo que te amo num hábito fácil de verdade irresistível
às vezes, rasgo o silêncio pesado com o punhal aceso do teu nome
e sei, cá dentro, que não deixarei nunca de chamar por ti
 
RM

sexta-feira, 20 de junho de 2014

os teus discos,

ouço os teus discos noite dentro
as janelas abertas, a noite ampla como uma ânsia que se confesse
ouço os teus discos noite dentro
as palavras repetidas como passos vagos que eu desse
ouço os teus discos noite dentro
e volta o céu estrelado do teu ventre junto ao meu
ouço os teus discos noite dentro
e ardem ainda as promessas que o teu olhar acendeu
ouço os teus discos noite dentro
e volta a chuva rasgando todos os telhados 
ouço os teus discos noite dentro
e volto a sentir no peito os sonhos agigantados 
ouço os teus discos noite dentro
esperando sozinho que digas que sim
ouço os teus discos noite dentro
esperando no escuro que voltes para mim

RM


sexta-feira, 13 de junho de 2014

sabes,

sabes, hoje não vou deixar-te dizer mais nada
vou impedir que os teus lábios rompam o silêncio
a madrugada é triste se o barco navega vazio

sabes, hoje não vou deixar-te ficar no frio cinzento da chuva
vou vestir-te o meu corpo todo já sem pressa
e esperar que as tuas lágrimas se cansem no escuro

sabes, hoje vou inventar uma nova rima na tua pele
vou estreitar os parêntesis dos nossos corpos
só porque a distância é como um rio perdido sem margens

sabes, hoje, só hoje, vou fechar os olhos e encontrar-te de novo
vou inventar perguntas e errar nas respostas que me pedes
e vou escrever no avesso de um outro início sempre o mesmo - 

que te quero e que não é tarde nunca

vem, só chegamos tarde se quiseres.

RM

domingo, 8 de junho de 2014

Até sempre, Maria.

A minha infância foi um longo tempo feliz sem despedidas e, talvez por isso, nunca me tenha sido fácil, até hoje, dizer adeus.
 
Ser criança foi o tempo do "oh menino", normalmente seguido de um sorriso cúmplice de algumas das pessoas que me habituei a ter por chão, a agarrar num hábito fácil e doce de meiguice e liberdade.
Ter quem goste de nós é poder pensar, apesar de tudo, que sempre nos esperam, que sempre teremos, no fim de contas, quem queira para nós um caminho melhor por entre a imensidão desabrigada do mundo.
 
A Maria foi uma dessas pessoas, uma pessoa a quem dizer adeus é injustificado, é sempre interromper o conforto profundo do bem que nos fazem as pessoas de quem, primeiro que tudo, recordamos o açúcar das palavras, a pureza nua e simples dos modos e dos instintos, o imediatismo do amor, da dádiva e do carinho. A Maria, irmã da nossa Gó, foi sempre "a Maria" como se, apesar dos cabelos brancos e da idade, aos nossos olhos o tempo não andasse por perto e se esquecesse dela nos bancos do jardim, nos domingos da minha infância em que a Glória nos levava a casa dela.
 
A Maria tomou conta do meu Pai e dos meus Tios. Dizem eles que com o Menino Jesus e a Nossa Senhora, ela os punha muito quietos, os segurava com um jeito infinito de catequista a contar histórias de atitudes bonitas, de pessoas boas que queria que eles não esquecessem.
 
Comigo e com o A. foi o mesmo - Deus existiu sempre nas palavras e nas acções das pessoas, como elas, que nos encheram a memória de afecto e perenidade. Nunca lhes disse isto, mas Deus foi sempre muito mais elas, a possibilidade maravilhosa de as ter encontrado e de elas serem um bocado "minhas", do que um senhor escondido algures por aí.
 
Na minha infância, o amor nunca esteve longe, nunca tive de o procurar muito - nasci dentro de um abraço de muitas mãos, de muita gente que parecia esperar encontrar-me desde há muito.
 
A vida é a arte dos encontros - há pessoas com quem sempre sentimos retomar uma conversa que não sabemos bem quando começou. Ontem no velório, foi a minha vez de resgatar o Deus justo, o Deus de um amor sem limites para salvar a Gó de uma noite escura demais. Ontem inventei por ela um outro chão, um chão onde o amor não exista tanto no que vemos ou precisamos de ver, mas mais naquilo que somos incapazes de largar e esquecer.
 
O que vivemos nunca nos pode ser roubado e isso, num dia como o de ontem, é a única luz com que podemos avançar neste caminho, por dentro da noite em que nos perdemos de alguém.
 
Quando a Gó me agarrou a mão e se deixou ficar assim por muito tempo, foi a minha vez de lhe lembrar a fé e de lhe agradecer - de lhe agradecer as irmãs, de lhe agradecer aquela família que se confunde com a história da minha. E, em silêncio, ficar; em silêncio pensar nela, na minha Avó, na minha família e em todas as pessoas que me chamam e, sempre depois, me sorriem.
 
Dentro da noite, ao segurar-te a mão, Gó, segurava também o meu chão para também eu poder andar. 
 
"Obrigada, menino", dizias tu uma e outra vez. E, como sempre, sorrias.
 
"De nada, Gó."
 
E, sem saberes, o teu sorriso depois de me chamares encheu-me o coração de esperança; de esperança de que, a nós, nos baste sempre chamar.
 
Do outro lado, na memória do sorriso da Maria, haverá sempre a alegria de um reencontro. 
 
 
Até sempre, Maria!      

  

segunda-feira, 2 de junho de 2014

ao longe,

ao longe, as luzes são todas passos para te encontrar
rasgo as ondas da solidão vazia desta noite enorme
e tudo o que quero é o cais do teu corpo sobre o mundo
e a tua boca como uma vela acesa para me guiar

ao longe, todas as feridas se escondem por entre os dedos
lembro, sorrindo, a primeira vez que dancei no teu corpo
e tudo o que fica é o resto florido da varanda do teu peito
e uma praia de lume onde viste arder os meus medos

ao longe, todas as palavras podem ser ainda inventadas
devagar, a língua demora no sabor doce do teu nome
e tudo é como um poema que te espere para rimar
como se fôssemos sair para a rua de mãos dadas

ao longe, as linhas do comboio podem trazer-te sempre até mim
o nevoeiro da manhã é como o teu olhar que espreita na janela 
em silêncio, caminho na areia fina da tua pele como num sonho
e sei que chegas quando, por entre as pedras, se levanta um jardim

RM