I.VI.
Quem nasceu primeiro?
o A., respondi, com gosto, toda a minha vida.
E toda a minha vida, cá dentro, soube que isso significou sempre que o engano da solidão não me tinha acontecido a mim.
O A. esperou-me desde o princípio - juntos, espreitámos sempre a vida um do outro como duas partes da mesma coisa que se olham, que se medem por uma medida ainda por inventar, toda feita dos silêncios em que apenas nos abrigámos sob a evidência morna dessa cumplicidade sem nome.
O A. sorriu-me da carteira no primeiro dia de escola - o mano estava lá, os óculos de massa, o brilho nos olhos e um aceno breve como quem diz meu sacana, isto vai correr bem.
Gosto de ouvir o meu nome na voz do meu irmão - o meu nome dito por ele é que é o meu, como se só ele guardasse de mim o retrato mais fiel e mais perfeito e, só assim, eu soubesse que é a mim que o mundo chama e abriga, que o mundo reconhece e cumprimenta.
Ricardo,
e eu, por cima do ombro, de repente, já sei que estou perto de casa, já sei que me vieram buscar ao avesso escuro dos enganos para me levarem de volta à morada que o A. tem escrita no envelope da pele dele.
Em mim, desde o princípio, nunca morei sozinho - se o meu coração fosse uma mesa, penso eu a sorrir, ela veio, desde o primeiro dia, posta para dois.
E o meu irmão mora em mim como o soalho velho que fala no escuro das noites das casas antigas - o chão chama por quem tem que cumprir uma espécie de promessa, por quem tem que, de alguma forma, ficar.
O meu irmão foi meu irmão por cima de tudo, primeiro que ele, em vez dele, contra ele, quando foi preciso.
Como se ser meu irmão lhe bastasse para, apesar de tudo, sorrir e dizer,
meu sacana, vai correr tudo bem.
Obrigado, Né, por todas as vezes em que a mesa estava posta e tu vieste e, mesmo quando não mereci, ficaste comigo nesse vício contente de repetir um prato de que se gosta muito, já sem saber porquê.
O palato do meu irmão, felizmente, nunca mudou.
Ele vem sempre sentar-se à minha mesa, pede muito pouco e vai ficando a ouvir-me com as mãos estendidas e os dedos grandes pousados como se ouvissem.
O A. ensinou-me, como numa aula da primária, como se escreve o perdão, como sempre se manda uma carta com uma morada para enviar resposta.
De todas as vezes, o meu irmão respondeu-me e perdoou.
De todas as vezes, o carteiro que a vida pôs a passar à nossa porta encontrou-nos remetente e destinatário do amor de que o outro precisou.
O meu irmão acende as partes mal iluminadas das ruas onde me perco e fica a sorrir-me como se apenas viesse para me dizer,
anda para casa, mano.
Agradeço à vida os cinco minutos que o meu irmão leva a mais do que eu. Graças a isto, nunca soube o que era a solidão e ando por aqui convencido de que, algures, alguém me espera.
29 anos e os cinco minutos em que o meu irmão já cá estava - desconfio, até hoje, que o A. arranjou maneira, já na altura, de me dizer, naquele primeiro dia, que íamos para casa.
e de sorrir, sempre.
O meu coração é uma mesa sempre posta para dois.
O mano vem e diz, sorrindo,
Ricardo,
Dentro de nós é sempre a mesma hora.
Os cinco minutos de avanço que ele leva, usa-os para pôr a mesa, compor tudo e ligar a música à espera, apenas, de poder ser o irmão que eu tenho mas, claramente, não mereço.
Obrigado.
RM| XXIX-V-MMXVI
RM| XXIX-V-MMXVI
Sem comentários:
Enviar um comentário