Sou uma flor da primavera que vocês começaram.
Conheci o vosso amor porque o vi acontecer diante de mim - eu, desde o princípio, engolido num abraço que sempre me incluiu, sempre me serviu na pele, sempre me orgulhou e fez de mim uma criança inteira e maior.
Casaram por amor, sei-o bem.
O Avô que te mandava fotografias,
Olhando o mar pensando em ti,
Tu, Vovó, que lhe bordavas mensagens em ponto de cruz,
Levam-te mil saudades,
E eu, desde pequeno, que vos perguntava,
É assim o amor? Alguma vez se arrependeram da vossa escolha?,
(Puto chato, eu, Deusmalivre),
E vocês, sempre me dizendo, por palavras, a verdade que eu via ser carne com os olhos e com o coração - o amor não é nunca um lugar fácil - há uma espécie de violência e de sequestro na forma como o lume intenso do nome do outro nos arde cá dentro; há o risco de uma dança sobre o abismo quando lançamos a corda dos nossos braços até ao outro; há uma imensa felicidade e paz no perdão das falhas que esse alguém nos merece; há um longo caminho todo de verdade,
72 anos de casada, Milinha,
Sentado na tua cama, falo-te do vosso primeiro jantar de casados no Abadia, relembro-te dessa vossa ida ao teatro no Sá da Bandeira e digo-te com a nudez explícita e costumeira entre nós,
Não achas que o Vovô te amou sempre, Vovó? Que na forma como te protegeu, te engrandeceu, mereceu o teu perdão e foi teu amigo e cúmplice, te deixa uma certeza disso mesmo?,
Tu respondes-me,
Claro que sim, pequeno. Eu, em bom rigor, não escolhi, fui escolhida. O teu Avô não me largava antes de começarmos a namorar e eu comecei a amá-lo, quando percebi que ali estava um homem e não um rapazola,
Rio-me ao ouvir-te dizer isso - só quem não te conheça bem, poderia imaginar, alguma vez, que irias para onde quer que fosse sem que o quisesses de verdade.
Aproveito para te agradecer,
Fui sempre muito feliz também por vossa causa, Vovó, e sei o que vos devo,
E tu atiras,
E já não és feliz, meu Amor?,
Sou, Vovó, sou - tu que me lês, mesmo sem saberes, o nublado dos olhos, que vês no escuro de mim mesmo - mas sinto falta dos tempos em que estávamos todos - os Pais, o A., o Avô e a Gó, percebes?,
Tu, de repente, abraças-me, enquanto eu te digo,
Não nasceu de ti e do Avô nada que vos iguale,
E tu,
Mas quem te disse que tu e o teu irmão não vão até chegar mais longe do que nós? Só quero estar lá para ver! E ver os vossos filhos e pegar neles ao colo!,
Sem que o saibas é por tudo isto que eu não consigo ir para longe - mesmo no Porto, enquanto estudante, neste mesmo dia 21, passava sempre em frente do Sá da Bandeira e, se pudesse, jantava no Abadia.
Tenho uma espécie de fé nos meus milagres e a pedra da minha igreja é a do nosso amor.
Os olhos curiosos que procuravam a mesa, o coração que se entretinha a imaginar a conversa, o tom de azul-feliz dos teus olhos, a satisfação do Avô por ter casado com,
A maior mulher e a mais bonita da freguesia!,
E eu a saber, até hoje, que são vocês o mapa da minha existência, a geografia serena da minha história, as coordenadas certas do meu caminho.
Como numa peça de teatro, as minhas deixas dependem das tuas - por amor, claro, também se improvisa - também se inventam pretextos para mais um abraço, uma visita, um beijo mais repenicado; também se perdoa, se guarda segredos - se fica, sempre.
Todos os meus dias são vossos. O meu coração é um palco de onde jamais sairão de cena.
Amo-vos com palavras por descobrir, com frases por escrever e pontuação por inventar - não há quem iguale as flores do jardim de onde nunca sairemos todos - Eu, o A., os Pais, vocês e a Gó.
Costumava dizer em pequeno,
Eu e o A. somos as flores mais bonitas da primavera que começou a 21 de Março de 1946!,
Tu, o Avô, a Gó e os Pais riam-se - e tu piscavas-me sempre o olho como se, apesar desse silêncio, eu merecesse ter a certeza de que o que dizia, para vocês e nos vossos corações, era a verdade.
Sei que costumavas enfeitar as lapelas dos teus casacos com flores do jardim presas num alfinete.
Tudo o que mais quero é ver o teu coração em flor para que o meu saiba como continuar.
Antes de eu sair do teu quarto, tu dizes-me,
Tal como eu dizia ao teu Avô,
Ou matamos o medo, aqui, os dois, ou ele mata-nos a nós. Nunca tenhas medo, pequeno!
Sem que o saibas, sem sequer imaginares, dizes-me tudo quanto preciso.
Por detrás da cortina, o Ricardo e a Milinha que só um e outro conhecem.
Saio para a rua.
Graças a ti, a lapela dos meus casacos traz sempre flores.
Nos corações de quem se sabe amado, a primavera começa todos os dias,
e o perfume intenso da felicidade, afinal, não acaba nunca.
Obrigado.
RM| XXV-III-MMXVIII