Rewind

sábado, 10 de novembro de 2018

Mamã,

Porque a Mãe faz anos,

Ouço-te chegar, sempre.

Nos tempos da creche, não falhavas - acontecesse o que acontecesse, essa era a tua hora - a hora de nos ires buscar, de nos ouvires as aventuras daquele dia, de nos trazeres, finalmente, para casa. 

Toda a minha vida foste isto - sempre que foi preciso que me fosses buscar, que me desses a mão, que houvesse um regresso, estiveste lá. 

Na verdade, os meus ossos são as escadas que te ouço subir quando o meu coração se aperta, se interroga, se perde ou duvida - o meu sangue é a tua morada e a minha consciência tem o som meigo da tua voz. 

Por isso, hoje, como sempre, digo que te ouço chegar.

És tu quem conhece, verdadeiramente, a casa que sou - percorres-me as divisões todas, lembras-te de que há que vedar as torneiras onde a tristeza teime em pingar, que há que abrir as janelas e deixar entrar a luz. 

Mas, Mãe, a luz é toda do teu nome, 

Mamã, o que faço?

Não te preocupes, filho, eu trouxe a chave

E a chave que tu trazes, essa de que tu nunca te esqueces, é a chave do meu coração - é a chave que abre a porta da esperança, que inventa outros sonhos, se preciso, ou um outro chão e céu, só para que eu possa continuar. 

O som da tua chegada é o som mais feliz da minha vida - sempre que te lembro, que te vejo ou te chamo minha, estou em casa. 

Devo-te, mais do que a vida, esta vida - uma vida em que houve, até hoje, uma casa, em que me soubeste, sempre, perdoar, em que me arranjaste por dentro como ninguém. 

Tu tens a chave suplente do meu coração - caso eu perca a que é minha, só tu me poderás salvar. 

Vou amar-te sempre. 

E, melhor do que isso, sei que vai ser impossível não te amar. 

Fazes anos, meu amor. 

O meu coração está em festa. 

Sobe-me as escadas dos ossos e demora-te num abraço. 

Para ti, para sempre, a porta fica aberta. 

Um beijo, 

R. 

RM| X|XI|MMXVIII

sábado, 3 de novembro de 2018

Gó,

Gó, 

Foste um rochedo forte contra as minhas inúmeras investidas de miúdo chato, sabes?

Era um puto com perguntas nos olhos, uma criança que teve a liberdade debaixo dos pés, que andou de colo em colo e que foi feliz. 

Eras para mim, bem o sabes, o amor no superlativo - sempre. 

Mesmo assim, lembro-me bem, eu testava os limites da tua fé, media o pulso da tua crença sem perceber, no fundo, que o que queria era poder emendar o mal que achava que o mundo te tinha feito e que não merecias. 

Gó, achas que Deus é justo? - eu, de pijama de seda trazido de Macau, uma espécie de quimono que achavas que me ficava bem, sentado na tua cama, com não mais de oito, nove anos,

É que não percebo como Deus dividiu o mundo entre pobres e ricos e os ricos vão para o céu só por ajudarem os pobres. Isso é instrumentalizar os pobres, percebes? Quem decidiu, antes de tudo, quem fica de que lado?, 

[Round 1] - Menino Ricardo - 1 vs. Gó - 0. 

Dentro de mim, ecoava a história da tua vida - muitas irmãs, uma casa pequenina, uma infância de trabalho, pouco direito a sonhar - o mais longe possível do que eu tive. 

Doía-me tudo aquilo, gostava de poder aliviar algumas das tuas dores, devolver horas inteiras à criança que não chegaste a poder ser. E, antes de dormir, zangava-me com um Menino Jesus que, como criança que foi também, não te deixou ser uma por mais tempo. 

Tu sorriste-me e, enquanto me calçavas as pantufas, disseste-me, 

Menino, a minha vida não foi fácil, sabe? Mas, no meio de tudo, tive direito à minha dose de coisas boas. Apareceram nas nossas vidas os seus Avózinhos e tudo melhorou. O seu Avô empregou a minha família toda, trouxe-me cá para casa e, mais tarde, veio o menino e o Dedé e tudo mudou na minha vida. 

Não acha que Deus esteve por detrás de tudo isso?, 

[Round 2] - Menino Ricardo - um murro no estômago. 

Nunca me esqueci disto, sabes? 

Que os teus olhos me tenham ensinado a ver que na vida há sempre uma razão para agradecer. Que, por muito mal que nos tenha acontecido, há sempre a esperança de que alguém nos estenda a mão e tudo se possa compor. 

Mas eu não desistia, 

Sabes, Gó, quando estiveres aflita, não peças logo ajuda a Deus. Eu ajudo-te no que puder, está bem? Prometo., 

Pelo amor que te tinha, não podia arriscar que a ajuda de que precisasses, pudesse não chegar a tempo. Havia de fazer tudo o que pudesse por ti - era o coração, desde pequeno, a querer salvar-te do que viesse que pudesse levar-te de nós. 

Levaste-me à escola, meu amor, muitas vezes. Na verdade, o teu exemplo tornou-se, até hoje, na mais perfeita lição de amor, de paciência, de abnegação, de coragem e superação que conheci. 

Desculpa, Gó, qualquer coisa. Tudo o que quis, em todas as vezes que interroguei o teu Deus, foi uma resposta para os desaires do mundo. 

Percebo, hoje, que a culpa é dos homens - e que, sim, há pessoas como o meu Avô e a minha Avó que, podendo, estenderam a mão e tentaram fazer a diferença. 

Mesmo assim, tal como te disse, em pequeno, 

Um dia quem te vai dar colo sou eu!

Telefona-me e, se quiseres, diz,

Menino, quer ir comigo e com o Dedé à missa?

Eu vou, nós vamos. 

Por ti, pela fé que tenho no mistério deste nosso encontro e, também, para agradecer. 

Por ti, pela luz do teu coração e pelo bem infinito que te devemos. 

Obrigado por tudo, meu amor.

Os milagres existem. 

Tu és o meu. 

RM| III-XI-MMXVIII

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Milinha,

Preciso de arrumar-me, às vezes, como a uma gaveta grande e funda. 

Ir ver a minha Avó é poder pegar com ela na melhor parte de mim - aquela que ela tão bem cuidou, aquela que ela sempre amou com um infinito que as palavras não alcançam, com gestos que não cabem no tamanho conhecido das coisas deste mundo. 

Vou vê-la porque a amo, vou vê-la porque gosto de voltar à janela de onde se vê o mar azul-verdade dos seus olhos - o mar onde o meu nome nada, até hoje, como uma promessa jamais quebrada. 

Tiro os sapatos, sento-me no chão - a minha Avó mexe-me no cabelo como num ritual antigo; os dedos longos e a meiguice na voz de quem, desde sempre, me esperou. 

E, então, começam as coisas do amor, 

Vovó, tenho a certeza que o Vovô te amou sempre, sabes?, 

Sim, meu querido, o teu Avô sempre me disse, 

Apaixonei-me por ti, Milinha, porque foste sempre lindíssima, vestias-te sempre com elegância mas, sobretudo, por ter percebido onde poderia chegar contigo e o que poderias fazer de mim, 

Fico feliz por ter sabido mais este pedaço da história que também é a minha - ouço a voz do meu Avô, de novo, e estendo-lhe a mão como se o chamasse. 

E, depois, a minha Avó dizer-me, 

O romance da nossa família, meu amor, há de ser escrito por ti. Conheces-me como ninguém e, quando vens, o meu coração pode falar. Os corações precisam de poder falar, sabes?

E a minha Avó parecer-me um milagre - quase 95 anos e estes versos que lhe saem do fundo de uma alma toda luz, ensinamentos que acendem as vielas escuras dos meus dias mais tristes. 

Sempre tive fé nisto - nos meus Pais, no A., nos meus Avós e na Gó. 

Juntos, o mundo estava inteiro dentro dos meus braços, o chão seguro e o céu limpo como uma planície de esperança e paz. 

Ter encontrado uma das irmãs da Gó e ter-lhe dito, 

Então, menina, quando vão ver a patroa? A porta da nossa casa está sempre aberta!,

Dois dias depois, a minha Avó recebeu a Gó e a irmã - vale a pena, por isso, andar na vida de coração aberto e deixá-lo assim - quem nos ama, sempre voltará. 

Vou para perto da minha Avó para me arrumar. 

Volto a vestir o agasalho que são sempre os seus braços, volto para lhe emprestar um dos meus casacos e, sobretudo, para descobrir que um e outro, ela e eu, nos guardamos sempre com essa devoção recíproca, com essa cumplicidade de quem já se amparou muitas vezes nas noites mais escuras das nossas vidas. 

É este o cimento dos meus dias - guardo esta verdade contra a torrente do tempo, insisto em escrever, em repetir, em relembrar como quem agradece a sorte que teve. 

Volto a ti, Milinha, para que o meu coração fale. 

Sei, sim, meu amor, que eles precisam de falar. 

E nos nossos, felizmente, a língua é, até hoje, a mesma. 

RM| I-XI-MMXVIII