Preciso de arrumar-me, às vezes, como a uma gaveta grande e funda.
Ir ver a minha Avó é poder pegar com ela na melhor parte de mim - aquela que ela tão bem cuidou, aquela que ela sempre amou com um infinito que as palavras não alcançam, com gestos que não cabem no tamanho conhecido das coisas deste mundo.
Vou vê-la porque a amo, vou vê-la porque gosto de voltar à janela de onde se vê o mar azul-verdade dos seus olhos - o mar onde o meu nome nada, até hoje, como uma promessa jamais quebrada.
Tiro os sapatos, sento-me no chão - a minha Avó mexe-me no cabelo como num ritual antigo; os dedos longos e a meiguice na voz de quem, desde sempre, me esperou.
E, então, começam as coisas do amor,
Vovó, tenho a certeza que o Vovô te amou sempre, sabes?,
Sim, meu querido, o teu Avô sempre me disse,
Apaixonei-me por ti, Milinha, porque foste sempre lindíssima, vestias-te sempre com elegância mas, sobretudo, por ter percebido onde poderia chegar contigo e o que poderias fazer de mim,
Fico feliz por ter sabido mais este pedaço da história que também é a minha - ouço a voz do meu Avô, de novo, e estendo-lhe a mão como se o chamasse.
E, depois, a minha Avó dizer-me,
O romance da nossa família, meu amor, há de ser escrito por ti. Conheces-me como ninguém e, quando vens, o meu coração pode falar. Os corações precisam de poder falar, sabes?,
E a minha Avó parecer-me um milagre - quase 95 anos e estes versos que lhe saem do fundo de uma alma toda luz, ensinamentos que acendem as vielas escuras dos meus dias mais tristes.
Sempre tive fé nisto - nos meus Pais, no A., nos meus Avós e na Gó.
Juntos, o mundo estava inteiro dentro dos meus braços, o chão seguro e o céu limpo como uma planície de esperança e paz.
Ter encontrado uma das irmãs da Gó e ter-lhe dito,
Então, menina, quando vão ver a patroa? A porta da nossa casa está sempre aberta!,
Dois dias depois, a minha Avó recebeu a Gó e a irmã - vale a pena, por isso, andar na vida de coração aberto e deixá-lo assim - quem nos ama, sempre voltará.
Vou para perto da minha Avó para me arrumar.
Volto a vestir o agasalho que são sempre os seus braços, volto para lhe emprestar um dos meus casacos e, sobretudo, para descobrir que um e outro, ela e eu, nos guardamos sempre com essa devoção recíproca, com essa cumplicidade de quem já se amparou muitas vezes nas noites mais escuras das nossas vidas.
É este o cimento dos meus dias - guardo esta verdade contra a torrente do tempo, insisto em escrever, em repetir, em relembrar como quem agradece a sorte que teve.
Volto a ti, Milinha, para que o meu coração fale.
Sei, sim, meu amor, que eles precisam de falar.
E nos nossos, felizmente, a língua é, até hoje, a mesma.
RM| I-XI-MMXVIII
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