Milinha e Bininho,
meus queridos,
Dizem-me que foi um dia feliz.
Tu e o Avô, aliás, sempre me falaram de amor - foi isso que vos juntou, foi isso que vos reconciliou, foi isso que, tantas vezes, vos salvou.
73 anos depois, essa luz perdura - a força do vosso encontro, a verdade da vossa entrega, a intensidade com que se quiseram ilumina, ainda hoje, as sombras maiores e os abismos mais fundos.
Começa a primavera, pensei todo o dia.
Nem todos, ainda assim, lançam à terra tamanha promessa e tão funda, anseiam, sequer, por essa coisa sem nome e sem medida que foi o amor que vocês fizeram acontecer diante dos meus olhos e que me infiltrou a pele como uma chuva de esperança e de orgulho.
Ainda hoje,
Porque sorri, menino?,
E, toda a minha vida, dentro de mim, houve essa luz, uma fé indestrutível no elo que nos une. Por isso, por mais afiado que seja o gume do sofrimento, por mais densa que seja, por vezes, a névoa do desalento, eu reacendo o farol que é o nosso amor - há uma casa onde me quiseram, onde me amaram e, em mim, esse mapa é eterno.
Eu sou daí - dessa primavera de 1946 que vos uniu e me trouxe, mais adiante, no leito dessa história.
Também vos disse sempre e para sempre,
Sim, aceito. - e amar-vos-ei por tudo o que foram e que eu, por mais que tente, nunca conseguirei igualar, retribuir ou merecer.
A minha Avó diz-me, rindo-se,
Tu sabes os meus segredos todos,
E, todas as vezes, decidimos os dois que esse dia pode ser também o de hoje - pode amar-se com a mesma ânsia de futuro, pode querer-se o outro como se tudo fosse ser eterno - e sou eu quem a leva pela mão ao altar da memória, sou eu quem lhe lembra que palavras lhe disseram o Avô António e a Avó Maria do Carmo, quem lhe aponta nas inúmeras fotografias todos os que são os nossos e que somos nós.
Quando os Avós se mudaram para Paços, um ano depois, dizem-me que o Avô António foi visto a chorar quando os criados arrancaram com as coisas e os Avós se puseram ao caminho.
Encontro-me com o meu bisavô nessas lágrimas - para quem ama os nossos como nós, é sempre primavera. E nunca, nunca, os nossos rebentos podem ir para longe de nós.
Vocês, todavia, voltaram, toda a vida, a casa.
A minha Avó sabe que eu e o A. decidimos ficar. De que serve um coração que não consegue consumar aquilo por que vive?
Há 73 anos, acendia-se uma luz - e eu comecei também aí. Volto a essa igreja inúmeras vezes, imagino a minha família espalhada por ali e orgulho-me do que os meus Avós fizeram nascer no coração um do outro.
Essa Primavera teve mais força do que todas as outras - foi, no fim de contas, a que me permitiu uma felicidade sem tecto, a que me ilumina o olhar e me faz trazer um sorriso debaixo da pele.
Porque sorri, menino?,
Apanhavam-me imensas vezes imerso inteiro nas recordações de tudo quanto tive, quase como se, num salto de olhos fechados, eu mergulhasse de cabeça nos mares que sempre conheci.
Obrigado, Milinha e Bininho, por toda a luz do meu caminho.
Vocês são o meu farol.
Hoje começou mais uma primavera.
Todos os dias, porém, eu escolho viver perto da árvore onde pertenço.
Se o Avô António me visse, saberia que a ideia de não estarmos juntos também me tira o chão.
Por isso, em todas e cada uma das vezes, eu voltarei sempre.
Cá dentro, o menino guarda a centelha que lhe iluminou o caminho.
Porque há uma casa
porque tem sempre que haver um regresso.
Um beijo,
R.
RM|XXIII-III-MMXIX