Rewind

sábado, 4 de maio de 2019

mãe,

dizem-me que é próprio das mães ficarem com certos dias
a minha, pelo contrário, visita-me, antes, de noite
traz com ela o agasalho da pele, o amor que veda as torneiras onde pinga a tristeza
traz com ela toda a terra que prolonga as estradas e evita os abismos e as faltas
senta-se comigo no escuro fundo e mobilado apenas pelo abraço das nossas sombras
ambos a ouvirmos o mar no gira discos da praia ao fundo

podia, eu sei, dizer que a amo - e isso é verdade
mas isso só assim é uma frase muito curta, quase como um post-it 
e eu, pelo contrário, gosto de prolongar o amor em vez de dizê-lo: 
ter pressa em dizer que se ama esvazia o peito de ar
e um peito que ama, como um balão cheio, só quer o céu 

compro-lhe, antes, uma data de livros, 
dou-lhe a mão quando vamos no passeio, 
sei exactamente como gosta do café
e digo-lhe que as flores de todos os jardins são para ela 

isso é um amor que dura mais
que traz mais cola que um post-it -
as flores ainda lá que ninguém as arranca
[são da mãe]
e ambos a querermos somente
que não nos faltem ruas onde dar a mão 
vontade de um café numa esplanada qualquer
ou de trocarmos livros como quem sublinha no papel as saudades que trazemos

o sulco é fundo, mãe,

tenho saudades tuas

vem ver-me de noite
talvez não diga que te amo - mas isso é a verdade
a noite traz o mar no gira discos da praia ao fundo

a verdade não a quero gastar, sabes?

que o amor se prolongue 
que as flores existam 
e haja ruas e sempre as nossas mãos

que o amor, dizia-te, se prolongue
que como o gira discos que roda as ondas na praia onde te abraço
se ouça o silêncio encher-se de luz
e do que não tem ainda um nome que lhe baste


RM| IV-V-MMXIX