Mamã,
És o destinatário cimeiro a quem o meu coração estará, até ao fim, endereçado.
É que ele, sabes, teima sempre em alcançar-te - mesmo tendo de engolir a distância, de fintar os infinitos desaires e encruzilhadas do caminho, ele irá, eu sei, ter que repousar junto de ti.
Só tu me decifras - há, por dentro dos corredores dos meus ossos, divisões de que apenas tu tens a chave, locais secretos onde somente tu sabes onde guardo as sombras absolutamente precisadas da luz infinita do teu amor.
Tu moras-me cá dentro - é ouvir-te a afinar-me as cordas no peito, a correr o veludo pesado da dúvida, a abrir as janelas por onde há de entrar o abraço da esperança e de onde se verão, certamente, no horizonte, as primeiras pinceladas de um futuro que só pode ser bom.
Dizes-me que aprendi a ler e a escrever sozinho e muito cedo. Que foi com a nossa agenda telefónica - a capa de couro castanho - Telefones, gravado a dourado -, o papel amarelado, as vossas caligrafias que eu procurei imitar e cujo significado, depois de entendido, eu copiava com a minha letra de puto minúsculo com cerca de quatro anos.
Estive com ela, hoje, na mão. Reparei que, já naquela altura, o meu interesse foi todo para os nomes dos nossos - "Mamã" e "Papá" - os Avós -, "Casa" - a nossa casa - e, logo hoje,"Glória - casa".
[Será este o sinal que te pedi, Gózinha? Estarás, finalmente, em casa?
Apeteceu-me tanto ligar-te, sabes?]
Percebi que aprendi a escrever com as letras com que se escreveu, afinal e toda a minha vida, o amor. Acho que isso explica parte do que sou - o amor existia e, havendo um número para onde ligar, eu estaria bem - poderia chamar-vos, poderia, como num búzio, ouvir-vos a voz e saber que viriam.
Mãe, foste tu quem me ensinou a conjugar o amor - és professora, é verdade, e isso terá ajudado. Mas, cá por casa, o amor, por tua causa, existe em tempos e modos que não pertencem ao mundo das regras gramaticais.
Entre nós, por exemplo, o presente é sempre mais-que-perfeito. O condicional é uma embalagem esquecida, nunca aberta numa prateleira qualquer e, sim, o futuro, a existir, só pode ser na primeira pessoa do plural - nós - nosso, portanto.
Toda a vida, trocámos cartas - mesmo dentro da mesma casa, éramos o carteiro um do outro e, no fim de contas, do que precisava absolutamente de ser dito.
Havemos de voltar ao Estio de cal branca de Lagos e da Meia Praia que foi nosso toda a vida. Sentados os dois, ver-te-ei puxar de um cigarro e, juntos, desfrutaremos da nudez transparente das nossas intenções e da segurança funda que as nossas raízes, entrelaçadas, têm junto do mar - do mar, sempre.
Todos os dias falamos, todos os dias,
Amo-te muito,
Ninguém nos ama como tu e crê, malandra, que ninguém te ama tanto como eu e o Né.
Serás sempre a razão porque nunca desistirei - a bóia de que todos os náufragos precisam e, infelizmente, nem todos têm.
És o bem num grau superlativo e absoluto - nem o sintético, nem o analítico me chegam - estás para lá disso.
Celebro a tua vida e agradeço-te por me teres dado não somente a minha vida - mas esta vida.
Quem aprendeu a escrever, como eu, pelos vossos nomes e quis decorar-vos logo o número de telefone, é alguém com o coração endereçado.
A vida tem-nos sido um bom carteiro.
Tu nunca te atrasas, um minuto que seja, a receber o que te destinei.
E a enviar resposta - sempre o que quero e, sobretudo, sempre o que preciso.
Obrigado por este amor sem estrada que o canse, ou tempo que o esgote.
Obrigado, todos os dias, meu amor.
Parabéns!
Beijos mil,
R.
RM|| X-XI-MMXIX