Rewind

sábado, 18 de janeiro de 2020

18.01|PELOS TEUS 96 ANOS,

Vóvó,

Milinha, meu amor, 

Corria o ano de 1924 e, neste dia, há 96 anos, sei que foste esperada com um abraço. 

Houve uma infância dourada em que recebias convites das amigas para irem tomar chá e baptizarem as bonecas, houve pele e verdade suficientes para que não amares os teus fosse uma impossibilidade absoluta. 

Anos mais tarde, em junho de 1987, dar-se-ia o nosso encontro. Disseram-me que o teu coração tremeu com o medo de que os teus gémeos - prematuros - não vingassem. 

Quando, em pequeno, me contaram isto disse-te, 

Milinha, por isso é que vou cuidar do teu coração a vida toda!

Ver-te feliz com os teus olhos azuis-abrigo acesos de alegria foi, em todas as horas, a minha vontade mais funda. 

Estavámos em 1998 e o país ardia com o primeiro referendo à IVG. Eu, na altura com onze anos e, em boa verdade, já avesso à neutralidade, quis pôr o assunto em cima da mesa. 

Era um dia quente - jantava-se no terraço, 

Então meus amigos, já decidiram como vão votar? Eu ainda não posso fazê-lo, por isso, façam-no bem, faz favor. 

E expus o meu ponto de vista - pessoalmente, se soubesse que seria Pai, quereria conhecer os meus filhos. E disse mais - ninguém é a favor do aborto. Mas não podiam continuar a condenar mulheres como se queimassem bruxas.

O A. estava comigo e os Pais e vocês ouviam atentamente.

Até que eu lancei para o ar, 

E o que sabemos nós verdadeiramente das vidas dos outros?

Defendia que se acabasse com a hipocrisia que, como sempre sucede, vitimava mais as mulheres pobres - essas que não sabiam onde ficava Londres e as clínicas onde os mais hipócritas de todos emendavam as "asneiras". 

Falámos todos muito, nessa noite - tu, o Avô e os Pais concordaram comigo e com A. 

Anos mais tarde, em 2007, fomos votar cedo. 

Cruzei-me contigo e disse-te, 

Diz que sim, não é, Milinha?, piscando-te o olho,  

Aquela conversa sempre na minha cabeça e o fim da hipocrisia que, em família, escolhíamos. 

Outra conversa, também no terraço, 

Vovó, Vovô, no vosso tempo, que métodos contraceptivos usavam?,

O Avô muito prontamente explicou-me e, em jeito de brincadeira, atirou, 

Nunca confies nesse engodo das temperaturas! Dá asneira!

E eu, 

Oh Vô, se calhar vocês aqueceram foi demais!

Todos se riram. 

Hoje, eu com 32 anos, tu com 96, o Avô que faria 100 este ano e esta conversa não ter tempo. Vocês foram sempre o futuro. 

Uma vez disse-te, 

Vó, nem parece que nasceste em 1924!, 

Pequeno, nós não somos do tempo em que nascemos, devemos ser do tempo em que vivemos

O amor começa, como sempre digo, com o espanto.

Não estava condenado a amá-los - amo-os porque não há outra coisa que me mereçam. Mais - o meu amor não será nunca retribuição suficiente para o milagre que foi o chão do meu caminho. 

Não acredito no amor sem carne - devo ter quase deslocado, umas quinhentas vezes, no mínimo, as clavículas dos que amo. Se é para abraçar, seguro-os inteiros. Toda a vida, eu a dizer, 

A ternura dói!

Eu tenho os olhos nas mãos, está visto. 

A minha Avó ria-se imenso das minhas investidas junto da nossa Gó, 

Oh Gó, mas porque é que os pobres não se zangam mais? Se não fosses católica, eras mais refilona, sabes?, 

Oh menino, o menino não sabe que os santos foram pessoas como nós? Que a vida deles nos pode servir de exemplo?, 

Olha, já sei qual seria - Maria Madalena! Essa, ao menos, segundo consta, teve direito a algum regabofe antes de ser santa!, 

Tive sempre uma gratidão imensa pela liberdade com que me educaram - quanto mais livre me deixavam ser, mais refém ficava de tudo isto. 

É com a liberdade que se prende para sempre e em definitivo. 

Diz a nossa Agustina que toda a família é uma forma de sequestro. Eu, até hoje, sofro de Síndrome de Estocolmo, coitadinho. E pior, desejo ardentemente que se esqueçam de nós para aqui - todos juntos, todos mais livres para voarmos porque o chão é de uma pedra que não quebra. 

Outro dia, 

Olhe, doutor, quando a sua Avó morrer, vai-me deixar saudades, diz-me a funcionária que lá temos agora. Depois da Gó, essa uma de nós, serão todas só isso. 

[Wrong choice of words, pá, pensei]

Devo ter fulminado a criatura quinhentas vezes, enquanto, por cima do ombro dela, intuí que a minha Avó poderia ter ouvido a pérola. 

Apresso-me a sentar-me junto dela, 

Já viste esta, Milinha? Está cheia de pressa para receber o último salário que levará desta casa, ao falar assim de ti. Nem para ela é boa, coitada!

A minha Avó aperta-me a mão no sofá, sorrindo.

Amparo a minha Avó e, com isso, amparo a minha vida.

Tiro o meu fio de prata - o meu "guizo" - como lhe chama o meu irmão. 

E digo à minha Avó que aquela corrente somos nós - a cruz que a minha Mãe me deu, a cruz que ela me deu, a medalha que foi do irmão mais velho dela e uma medalha da Senhora do Carmo que comprei, num dia 30 de agosto, só para dizer à minha Avó que a mãe dela, Maria do Carmo, não estava esquecida. Ela que faria anos nesse dia. 

O fio dá-me sorte, como eles me deram.

Em pequeno pedi à minha Avó, 

Fala-me do mal

O que o meu coração queria saber era como se supera o lixo do mundo, como se emendam os erros, como nos salvamos nós, apesar de tudo. 

Aprendi a viver mas, também, a sofrer com a minha Avó.

Ao ouvir, muito cedo, das falhas do mundo, preparei-me para elas. E descobri que o amor salva. Aliás, que só o amor salva. 

A minha Avó salva-me todos os dias,

Pequeno, só quero que um dia um neto teu te ame como só tu me amas. 

Toda a vida me perguntaram, 

De onde raio te vem tanta alegria?

Daqui. - um dedo que aponta para o coração e um coração que apontará, em todas as horas, o caminho de casa. 

Obrigado, meu amor! 

Parabéns! 


RM|XVIII-I-MMXX