Uma noite quente com esse embalo terno de um ar amplo. A vida apagada como a lua ausente num céu imenso e vasto. O rumor do vento em passos desajeitados de criança tropeçando, ao de leve, nas dobras do teu corpo esbelto. Ao fundo, a planície ondulante por entre as rochas. Ondas como pequenos goles de licor espesso. A rua que descia deserta. Ao longe, um latido forte de um cão lançado contra a parede serena de silêncio. E, de novo, a manta da acalmia a cobrir-nos aos dois nesse abraço longo.
Sempre procuraste o mundo sem o rumor constante de desejos que não eram os teus; sempre quiseste decantar os momentos como se, só levados para longe da massa informe da turba, nada os pudesse perturbar. Ou roubar de ti qualquer fragmento que sei guardarias na lupa dessa memória atenta. E ficavas muito quieta debaixo de um altar sem brilho, numa noite de calor opaco com o teu rosto preso no meu peito. Os olhos cerrados com o desenho da atenção nas pálpebras. Ouvias o meu coração; o ar que entrava para que eu pudesse continuar a escrever o teu nome no véu por abrir do tempo. Às vezes, o teu olhar pedia-me que ouvisse esse absoluto silêncio - o silêncio onde ambos sabíamos ouvir o lume aceso que nos moldou juntos.
Sorrias depois longamente. Podíamos durar nesse silêncio. Nunca tiveste medo das palavras. Mas sabias, tal como eu, que há uma segurança maior quando não corremos a dar nomes às coisas para as fixar num dado momento. O nosso amor como esse absoluto que não era nosso mas sim nós - inteiros. Não querias que o nosso amor morasse num lugar para onde os nossos passos o não tivessem levado. E, por isso, nesse silêncio onde cabíamos os dois, nessa mímica sem gestos e apenas de pulsações podíamos ouvir onde era o nosso caminho.
Quando o recorte dos teus lábios encontrava os meus com essa força renovada de um desejo que se espraia no claro impulso da vontade eu, como tu, gravava na memória a valsa secreta do que nascera no silêncio.
Na dobra da baía acendiam-se luzes como velas contra um pano escuro e a noite caía num sono agora mais profundo que parecia ter aconchegado também os cães.
E quando me levavas a ver o mundo assim adormecido e quieto podia, então, existir o amor. O amor que é feito desse aquém que nos põe no outro algo que não temos. E nesse silêncio podíamos ser o que faltava ao outro sem um nome deste mundo a que sempre falta alguma coisa.
Amava-te mais pelo brilho silencioso do teu olhar que, agora que as luzes se apagaram todas, parecia brilhar mais no corpo escuro da noite.