Rewind

sábado, 10 de outubro de 2009

O Sr Breton e a Entrevista de Gonçalo M. Tavares

Há livros que nos esperam sem o sabermos. E, no caso deste, quem o escolheu sabia o que fazia. Um bom presente, portanto. O reencontro com Gonçalo M. Tavares foi para mim mais emocionante do em "Jerusálem".
Esta obra é um breve repositório de palavras - breve no sentido de que a narrativa é curta, mas funda no sentido em que o autor cava fundo no desenrolar das questões. Um discurso profundamente reflexivo retrata o Sr. Breton num monólogo - um monólogo que fica sem resposta. No papel ficam as interrogações- essas que observam a poesia e lhe tentam diagnosticar o carácter; essas que procuram captar-lhe a pulsação e traçar-lhe o retrato fiel.

Surpreendente a temática neste escritor - Gonçalo M. Tavares é a voz meticulosa e exacta de narrativas calculadas. Ao vestir a pele do Sr. Breton, M. Tavares é como um relator de um monólogo que o próprio André Breton poderia ter tido. Em frente de um espelho, com um gravador pelo lado. Numa casa de um bairro qualquer.


Obrigado J.


"4ª pergunta:


Tenho a convicção de que um escritor acredita mais na palavra deus do em Deus propriamente dito. E este modo de colocar a linguagem no quarto principal do palácio não é de forma alguma exclusivo dos poetas, pois também os que trabalham com leis confiam mais nas palavras do que na vida em geral. Ou seja: confiam menos nas coisas que vão acontecendo antes ou durante a existência do verbo do que no verbo propriamente dito.

Para descrever o aparecimento da Surpresa no mundo não há decreto-lei, mas haverá certamente um verso. Para a descrição da Repetição não existirá um verso, mas um decreto-lei que a entende, explica e prevê. A vida inteira encontra-se, assim, coberta por palavras. Apenas com vinte e seis letras se dá nome a todas as coisas do mundo, se explicam os inteiros movimentos de todas as coisas do mundo. O que se conseguiria, então, se o alfabeto tivesse vinte e sete letras? Há quem considere, aliás, que o brutal desconhecimento de Deus se deve precisamente à falta desta última letra do alfabeto. E a qualquer Língua falta uma última letra. Terminámos cedo demais e, assim, ficámos com os Mistérios no mundo. Mas isto é outro assunto, Sr. Breton. O que lhe queria mesmo perguntar, Sr. Breton, surge, afinal, de uma outra preocupação, e é esta: será que só a realidade onde a expectativa existe é que se pode transformar em verso? Isto é: poderá ser a poesia entendida como os momentos (plural) que antecedem o momento (singular) em que uma cadeira, por exemplo, se parte? Ou, dito de outra forma assim definitiva: parece-me que a poesia é, nas palavras, o momento em que a linguagem está prestes a partir-se em dois. E porquê? Porque aí foi colocado um peso excessivo: os versos pousam palavras sobre a linguagem, palavras que, lado a lado, pesam mais do que o suportável. E a frase pode nunca cair, mas até ao fim dos dias promete cair, ameaça cair. E cairá.

Ou não? O que lhe parece, Sr. Breton?"


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