Rewind

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A vida, de novo.

Pensava que tudo começa nas palavras. Ou, precisamente depois delas.
É depois de se fixarem as palavras que se nos enchem as mãos ou que, pelo contrário, ficamos sem nada.
Por isso, escrevia. Porque as palavras são dedos que ficam na pele depois dos corpos se terem já abandonado. Mas existem ainda os dedos e o toque que se pode repetir vezes sem conta contra o cansaço do vazio.
Ele sabia que as palavras ajudam a viver. E, através delas, podia haver redenção. A redenção que nos sai do corpo, sob a pele das linhas.
De novo, acontecia o sol a derreter-se na calçada de uma rua ensarilhada numa cidade qualquer.
De novo, os soluços da chuva e os olhos que te veêm com o olhar perdido no cinzento revolto do céu. De novo, voltava o tempo que morria do lado de lá da janela com a vida como o nosso triunfo sobre ele.
E, enquanto o véu das palavras ia revelando o eco do tempo - em passos seguros de um caminho já pisado - de novo, voltava a doçura da tua pele ou a meiguice rouca da tua voz.
E ele podia demorar a atenção num gesto já desfeito em cinzas; podia desenhar uns olhos com as palavras - refinando o traço, apurando o brilho que eles tinham numa noite que já não vem no avesso dos dias.
Por isso, gostava das palavras. Nelas existe o tempo e a exacta medida do quanto as coisas duram em nós. Com as palavras nenhuma despedida chega a ser definitiva - pelo menos não enquanto quisermos voltar ao que, para nós, ainda não acabou.
Nas palavras somos senhores do tempo. Elas prolongam-nos as horas num tempo que já foi. As palavras são, em certa medida, uma promessa de eternidade.
Vive tanto do que já não existe nas palavras - alguém que perdemos; um lugar em que fomos felizes com alguém. Com as palavras tudo pode permanecer ou brihar mais contra o escuro do vazio.
Por isso, escrevia. Para que a vida tivesse a justa medida do que as coisas era para si. E para que continuassem a sê-lo - apesar de muitas delas já não serem dele.
Pelas palavras nunca somos desapossados - continuamos a percorrer o mesmo caminho sem que o chão nos fuja, debaixo dos pés.
As palavras são o familiar - o lugar onde se reconhece a nossa identidade; onde fica presa a intensidade de cada deslumbramento ou miséria.
As palavras são a vida que continua por cima do que falha; o cimento que une o que fica depois da perda. O chão onde nasce o fruto do que principia - alimentado pelo sangue do que, finalmente acabou.

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