"Sabes que o mundo significa muito pouco, não sabes?" O seu olhar com um fundo de cor firme como tábuas de madeira coesas que não cedem.
A cidade diluía-se em ecos vagos já ali ao lado. E aquela pergunta em jeito de acusação a impregnar o ar como o frio que se infiltra na pele em dias cinzentos de invernia. O que importa, de facto, o mundo?
Pensava ele em como certos dias lhe pareciam mais bonitos através da cortina intensa do seu cheiro; em como certas ausências sabiam bem porque ela estava presente no que restava do traço fino do seu corpo no dele.
E, de novo, o que importa o mundo? Reparava nos seus dedos - longos e finos. A luz do dia emprestava-lhes o fundo mas a luz era somente deles. Desses longos dedos como arados que lhe rasgavam as costas e lhe adoçavam o sono.
Recordava o fundo dos seus olhos onde não nasciam dúvidas - tinham os seus olhos esse fundo visível que sempre têm os olhos daqueles que diminuem as escalas e suprimem toda a grandeza.
Ele julgava perceber que, no fundo, ela sabia que o mundo não vem dormir connosco no útero escuro da noite; que o mundo nos espera sempre com o desfecho das nossas vidas do lado de lá do vidro das janelas. E nunca entra. Quem nos segura a mão enquanto o mundo espera para nos condenar ou nos aplaudir?
Quem sempre entra connosco pela porta de madeira envelhecida de casa sem saber o que os dias nos farão com a surpresa do que ainda não se abriu?
E ele pensava nisso. De como para ele o mundo também era esse fora onde tudo nos acontece e onde somos empurrados sempre em direcção a algo; de encontro a alguma coisa, muitas vezes, vestindo o corpo inefável do vazio. E esses embates são geralmente os que doem mais.
Ela ficava com ele. Desafiando a vida que esperava como se ela nao existisse. Não queria os aplausos e, às misérias adiava-as com risos infantis de quem se deita na cama da fantasia com o corpo cansado de amar. Ela gostava de fintar o próximo passo.
De inscrever no mundo uma expectativa e, no momento seguinte, vaguear deitada nas horas como se a promessa fosse já um leve murnúrio distante.
Ele não era assim. Saía com a face disposta a receber o dia que acabara de chegar e podia dizer-se que caminhava de encontro ao que viesse.
Mas era ela quem ficava com ele, à noite.
Era ela quem entrava com ele na casa grande em frente ao mar com amplas janelas e não lhe perguntava onde estariam os dois amanhã.
Ela estaria com ele. E, por isso, o mundo importava tão pouco. Com o corpo dele a revelar-lhe a alma com toques suaves e alguma firmeza em gestos de volúpia mais acesa ele era o seu chão e o seu céu.
Dele tudo nascia para a ele tudo voltar. Ela sabia que tudo o que lhe acontecera fora fruto da sua vontade solitária quando o seu corpo amou mais um pouco e o mundo não ia desenrolando o fio contínuo da sua narrativa.
Podia ela assim perder menos.
Ele fora percebendo que, de facto, quem importa são as pessoas. Mas apenas aquelas que ficam connosco, independentemente do que nos traz no bolso o mundo, do lado de lá das paredes sólidas.
Ela gostava de inscrever na espessura mecânica do tempo uma valsa e um ritmo diferentes -hipotecava o seu corpo e o seu amor a um desejo incondicionado de partilha. E ao condicionamento esmagava-o com o antítodo poderoso da entrega.
"Sabes que o mundo importa muito pouco, não sabes?" E, de novo, esse olhar sem fissuras.
Ele, enfim, percebera que o mundo importava muito pouco. Importava, sim, essa vontade que alguém tinha de ficar com ele sem perguntar onde iam. Sem querer condicionar a entrega ao jogo que espera para acontecer lá fora.
Ela não aceitava que o mundo pudesse ditar quanto amamos uma pessoa.
O amor é o nosso chão e, frequentemente, o nosso tempo. O tempo do que nos acontece dentro. O tempo onde queremos ficar longe do mundo.
Ela erguia o seu amor como uma espécie de liberdade incondicionável. Como um protesto. Como um segredo contado em surdina que as paredes ouvem mas não contam.
E que ele, finalmente, percebera.
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