Cresci rodeado de retratos. São rostos de pessoas que o sangue me fez herdar e que habitam os móveis das casas da família como pedaços de memórias felizes.
Desde pequeno lhes quis saber o nome - e a minha família rapidamente me desvendava um pormenor da vida desse alguém que nunca os deixava esquecer.
Herdei da minha família esse gosto de os ter por perto - olho os rostos, as pérolas, as peles, os fatos de corte perfeito dos homens que já tiveram, como eu, a vida ao dispor dos passos. E sempre me pergunto como seriam as suas vozes. Muito das pessoas se conhece pelo olhar, mas a voz é algo que se nos enfia na pele e ecoa dentro de nós.
Imagino que dias correram nas vidas que foram as deles - tento adivinhar se a felicidade os banhou como a luz que entra na sala de onde os vejo. E resolvo perguntar à minha avó se a mãe dela foi uma pessoa feliz; como eram os irmãos dela; como se apaixonou pelo meu avô.
Pergunto à minha mãe pelo lado dela - e enquanto ela fala vejo a minha bisavó no dia do seu casamento com o homem que foi o amor da vida dela e um dos maiores amores da vida da minha mãe que não deixa esquecer o avô.
Pergunto à minha mãe pela mãe dela - e ela começa a desenrolar o novelo desses dias felizes perto dessa mulher extraordinária que foi a minha avó.
E, mais uma vez, retorno aos retratos e quase consigo adivinhar o tom exacto das vozes dessas pessoas - o seu carácter é o que fica como legado sobre os tempos e é isso que depõe a favor dessas vidas que esperam no meu sangue para se manifestar.
A minha avó fala-me da mãe e dos conselhos que ela lhe deu para que ficássemos todos sempre juntos - a minha avó mergulha dentro dela e resgata a mãe carinhosa que ia com o motorista vê-la ao colégio e a fazia doer de saudade; recorda o maravilhoso pai que a fez uma mulher que chama os sentimentos pelo nome e os torna vivos na voz e nos gestos.
Vejo como a minha avó olha o meu irmão - o seu rosto abre-se e fica orgulhosa por ver no génio e nas feições o marido que nunca admite ter perdido para a morte.
Tudo o que existia nos retratos - os móveis, as jóias, os relógios de bolso e numerosos botões de punho moram hoje connosco - quando alguém os usa, vejo a minha mãe, a minha avó orgulhosas porque alguém hoje ainda chama por eles.
"- Ricardinho, um dia, quando eu cá não estiver, tu e o teu irmão guardam estas coisas todas?"
"- Oh avó, claro que sim, que disparate." (sabendo nós que o que nos dói mais é que todos os retratos teus nunca nos chegarão.)
"-Realmente, meus filhos, até parece que não sei quem tenho.", diz-nos ela e ficamos os dois felizes por vê-la tão certa, como nós, que a vontade nos traz sempre juntos.
E, percebo hoje, que os retratos nos ajudam a saber quem temos - são uma forma de termos sempre o meu avô naquele fim de tarde, sobre o verde da paisagem, que mora preso naquele olhar que alguém fixou.
Ter uma família é gostar de aperfeiçoar uma impressão vaga que baloiça na valsa do tempo - é poder arrancar do vazio esse tio avô que só usava sapatos oxford e acrescentar à imagem dos retratos esse gosto particular que deixa adivinhar outros traços do carácter.
Essa é a verdadeira e mais valiosa herança - a que nos chega sobre a forma de narrativa apaixonada que se sobrepõe às perdas, à fraqueza do corpo, à própria finitude.
A minha avó colecciona retratos e a minha mãe sempre procurou tê-los por perto também - as duas são pessoas que não se querem perder.
Também eu fico contente pelo A. - todos os dias se torna mais parecido com o meu avô e tudo se torna mais curioso porque a predilecção que sempre tiveram um pelo outro é hoje mais visível que nunca.
Os retratos não chegam, nunca chegam - por isso, enquanto crianças, nos iluminaram logo pequenos aspectos, defeitos, brincadeiras que foram os daquelas pessoas. Os adultos sabem que as crianças tendem a recordar as pessoas pelos seus traços mais exagerados ou diminutos - timidez, força de carácter, azul fundo dos olhos e outras coisas.
Visitamos as terras e a minha avó rejubila quando lhe dizem que eu e o A. "somos da raça" - para ela, que nos quer ver o futuro, há uma certeza de que o pai dela, a sua mãe e os irmãos que jamais esqueceu, continuam.
Tiramos muitas fotografias com a família - lá estão mãe, pai e avós na cómoda do meu quarto e do A. Todos os dias, quando acordo, quase consigo ouvir o meu avô a conversar com a minha mãe na sala. E a minha avó toda um sorriso porque leva na carteira mais uma fotografia com os dois netos que ela ama mais.
Os retratos são sorrisos postos para lá do esquecimento e do desmembramento dos clãs. Na minha vida, na minha casa e no meu coração haverá sempre um lugar para todos eles.
Os que vierem depois deles conhecerão esta morada aberta onde todos nos queremos reunidos. A minha avó chegará aos meus. Pequeninos perguntarão: "Quem é?" E eu direi: "Era a tua bisavó que tinha um olhos azuis, azuis como o céu num dia largo de Sol."
O mesmo com os meus pais, o meu avô ou a Gó que são a medida exacta da minha família.
Sei que não há retratos que cheguem para uma vida onde caberia muito mais, se nos dessem mais tempo. Mas ter a luz do olhar daqueles que nos tornaram o caminho mais sereno é algo que empresta ao lugar onde moramos essa face perfeita de um amor que não precisa de corpos para ser inteiro.
2 comentários:
Adorei Ricardo a tua escrita e o que tens dentro do teu coração.
« continuo com a minha máxima, o essencial é invísivel para os olhos, só se vê bem com o coração»
Conceição
Ricardo adorei os seus retratos!Muito bonito !A sua sensibilidade, a sua escrita , tudo o que tem no seu coração, o amor aos "seus"!!
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