Rewind

terça-feira, 18 de outubro de 2011

família.

Há pessoas que nos tornam a vida num voo mais alto. Há escalas aonde nos podem chegar os sentimentos, que podemos ficar toda uma vida gratos por termos vivido isso dentro de nós.
Identifico sempre a minha família com essa sensação de plenitude que trago comigo, quando me nomeiam como elo na sequência vasta do tempo que nos traz reféns uns dos outros pelo sangue e pelo amor.
Hoje de manhã, a minha avó estava feliz - a felicidade tingiu-lhe o olhar de uma luz parecida com o início de vida num lugar calmo, como devem, de resto, ser os afectos amarrados fundo dentro do que somos.
Fica feliz com a nossa presença pelas salas - talvez se lembre dessas duas crianças muito louras que, como diz, lhe douraram não a velhice, mas a vida toda porque, depois de nós, ela fez muito mais sentido.
Conversamos sobre o país, sobre essas pessoas e vidas que a minha avó nomeia como que a sentir o pulso de algo que lhe foi querido e agora esmorece.
Preocupa-se connosco - borda de amor o pano escondido do nosso futuro, desejando que seja assente no que lhe ensinaram ser o cimento do mundo e das relações. Fala do amor e do perdão e, enquanto isso, brinca nos dedos com uma cruz que o pai lhe deu quando jovem e que traz ao peito.
Os dedos são longos, as mãos muito delicadas - adivinho que falar da família para ela, é nomear quem mais a amou.
" - A morte do meu pai foi o maior desgosto da minha vida."
Olho-a nos olhos - há uma névoa que é o princípio das lágrimas que lhe jorram na meiguice das palavras, com que chama esse passado que a fez uma mulher maior.
Sei, enquanto me fala desse dia, que o seu corpo foi atingido por esse vazio que se rasga dentro de nós.
Há uma fotografia dos seus pais na credência, ali perto - um casal nascido no século XIX com um ar deslumbrante - ambos louros, os olhos muito azuis dos dois a denunciar a repetição com que o sangue nos baptiza o corpo, desde o seu início.
São um casal de uma elegância notável - reparo como a minha avó é um decalque perfeito das feições desse homem que foi para ela a bitola de todos os feitos.
" - Sei, meus pequeninos, que em vocês os dois vai estar sempre um bocadinho de mim e de todas estas pessoas que são a nossa família."
Isto sabe-me como um longo abraço, em que me cosem na pele a certeza de pertencer a um caminho.
Olho, de novo, o retrato - imagino o orgulho daqueles pais naquela filha - aquela que nunca os deixou esquecidos, que os traz amarrados naquilo que subsiste do que lhe deram.
Há, em mim, todos os bocadinhos da minha avó - cada gargalhada é como vida que semeio na aridez dos dias, cada minuto é uma pincelada com que aperfeiçoo a minha crença no que somos.
" - Tens que cá andar muito tempo, ouviste, minha malandra?" - digo-lhe eu.
Digo-lhe que, sem ela, a minha vida nunca mais será a mesma, que quero que veja os meus filhos e o que vier neles do que somos.
" - Avó, nunca me vou esquecer do que aprendemos contigo."
Dou-lhe um abraço muito apertado. Volto atrás e digo-lhe:
"-Gosto muito de ti." e esta frase ecoa dentro de mim, sempre.
"- Eu sei, filho. Eu também."
E, numa manhã que principia, deixo cravada no caminho do tempo, a razão da minha fé nas coisas e nas pessoas. E isso é, afinal de contas, o milagre que acontece quando descobrimos essa medida maior nos dias.
Olho a minha avó, enquanto se afasta do carro.
"- Não se esqueçam de me vir ver. Gosto da companhia de gente jovem.", diz-nos ela.
Enquanto lhe digo que não me esquecerei, compreendo que a minha avó é do tempo em que vive, não do tempo em que nasceu.
E, entender as ambições desta geração que ela deixa no mundo é, para ela, o saber que há outros capítulos que eu e o A. vamos acrescentar à nossa história.
É, no fundo, saber que, algures dentro de nós, haverá sempre uma imagem da nossa avó, que poremos no coração dos nossos filhos para, no fim de tudo, continuarem sempre essa promessa maior do que a vida que é o verdadeiro nome do amor.

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