Tia,
Já há flores na varanda de sua casa, sabe?
Uma varanda como uma ferida verde na altura cinzenta dos prédios daquela rua do Porto.
Graças a ela, mesmo em pequeno, soube sempre onde morava - nessa casa tão cheia de memórias, de livros, de pintura e tão cheia da vossa história de amor.
Sabe, Tia, sempre achei que a sua história e do Tio Arnaldo foi, sobretudo, uma belíssima história de amor.
A Avó diz-me que começaram a namorar ainda muito novos. A Tia vinha do Porto passar os Verões à Aparecida e costumava passear muito com o primo que aprendeu a amar.
E eu aprendi a admirar o tamanho desse amor - a luz que ele teve pelo meio das trevas de tantas e tantas coisas difíceis, a verdade que ficou no abraço doce que a sua memória nos deixa.
Lembro-me da Gó me contar que o Tio lhe disse uma vez:
Sabe, Glória, eu quero morrer primeiro que a Maria Alcina. Nós somos como um casal de passarinhos e eu não saberia aprender a viver sem ela.
Até hoje, guardamos todos uma saudade imensa desse Tio que, como Homem, tem o tamanho de todas as vidas que vieram depois dele e que foram melhores por sua causa.
Dele guardo, sobretudo, a doçura de todos os encontros - a vontade que tinha, como me dizia, que "fizéssemos o futuro acontecer mais cedo."
Lembro-me de ficar com a Tia a olhar as pinturas horas a fio e de ficarmos a conversar no quarto com vista para a Ponte da Arrábida.
Lembro-me da Donzília, com a sua voz tão alegre, às compras na mercearia, em Miguel Bombarda:
Olá, olá, meninos! Então, queridos, como estão? - nela vi sempre a vossa Gó, essa espécie de família que a vida nos revela no coração de alguns.
Também eu gostava de ter vivido os Verões em que os meus Avós iam com os Tios e os filhos e primos todos até à casa com janelas em bico, na Foz.
Admiro os meus Avós por terem estado sempre do lado do futuro que era o vosso lado - olho a minha Avó com um respeito enorme quando me diz que nunca teve medo de ir visitar o Tio à cadeia; ou quando, ainda ontem, ao lembrar-se dos julgamentos chorou, uma vez mais.
Lembro-me do Nanau e de passear com ele e com o A., ao fim da tarde, depois da faculdade.
Lembro-me de ficar vaidoso quando a Tia dizia:
Estes meus sobrinhos também tiraram Direito como o Arnaldo.
Hei de lembrar-me sempre de si, Tia.
Deixo-lhe o poema que o Tio lhe dedicou quando fizeram 50 anos de casados, dia 17.04.2005.
Tenho o convite guardado até hoje.
Aqui vai:
Tu me foste
namorada,
noiva,
amante.
E Irmã,
Amiga,
Mãe,
Mulher.
É de
justo
que eu
te cante.
Que eu
me encante
até morrer.
E o faça,
e o faça
com prazer!
Arnaldo Mesquita, in Dispersos (diversos), p. 194.
Sei, hoje, que o Tio foi maior graças ao Amor que lhe guardou sempre.
Sei, também, que o seu coração se cansou de saudade.
A esta hora, que estejam todos juntos: a Tia, o Tio e o Nanau.
Sei que saberão encontrar-se, também desta vez.
Já há flores na sua varanda, querida Tia.
É a Primavera que vem aí.
E o Céu enche-se de pássaros que parecem querer voar juntos para sempre.
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