Rewind

sábado, 7 de março de 2015

Até sempre, Tia!

Tia,
 
Já há flores na varanda de sua casa, sabe?
 
Uma varanda como uma ferida verde na altura cinzenta dos prédios daquela rua do Porto.
 
Graças a ela, mesmo em pequeno, soube sempre onde morava - nessa casa tão cheia de memórias, de livros, de pintura e tão cheia da vossa história de amor.
 
Sabe, Tia, sempre achei que a sua história e do Tio Arnaldo foi, sobretudo, uma belíssima história de amor.
 
A Avó diz-me que começaram a namorar ainda muito novos. A Tia vinha do Porto passar os Verões à Aparecida e costumava passear muito com o primo que aprendeu a amar.
 
E eu aprendi a admirar o tamanho desse amor - a luz que ele teve pelo meio das trevas de tantas e tantas coisas difíceis, a verdade que ficou no abraço doce que a sua memória nos deixa.
 
Lembro-me da Gó me contar que o Tio lhe disse uma vez:
 
Sabe, Glória, eu quero morrer primeiro que a Maria Alcina. Nós somos como um casal de passarinhos e eu não saberia aprender a viver sem ela.
 
Até hoje, guardamos todos uma saudade imensa desse Tio que, como Homem, tem o tamanho de todas as vidas que vieram depois dele e que foram melhores por sua causa.
 
Dele guardo, sobretudo, a doçura de todos os encontros - a vontade que tinha, como me dizia, que "fizéssemos o futuro acontecer mais cedo."
 
Lembro-me de ficar com a Tia a olhar as pinturas horas a fio e de ficarmos a conversar no quarto com vista para a Ponte da Arrábida.
 
Lembro-me da Donzília, com a sua voz tão alegre, às compras na mercearia, em Miguel Bombarda:
 
Olá, olá, meninos! Então, queridos, como estão? - nela vi sempre a vossa Gó, essa espécie de família que a vida nos revela no coração de alguns.
 
Também eu gostava de ter vivido os Verões em que os meus Avós iam com os Tios e os filhos e primos todos até à casa com janelas em bico, na Foz.
 
Admiro os meus Avós por terem estado sempre do lado do futuro que era o vosso lado - olho a minha Avó com um respeito enorme quando me diz que nunca teve medo de ir visitar o Tio à cadeia; ou quando, ainda ontem, ao lembrar-se dos julgamentos chorou, uma vez mais.
 
Lembro-me do Nanau e de passear com ele e com o A., ao fim da tarde, depois da faculdade.
 
Lembro-me de ficar vaidoso quando a Tia dizia:
 
Estes meus sobrinhos também tiraram Direito como o Arnaldo.
 
Hei de lembrar-me sempre de si, Tia.
 
Deixo-lhe o poema que o Tio lhe dedicou quando fizeram 50 anos de casados, dia 17.04.2005.
 
Tenho o convite guardado até hoje.
 
Aqui vai:
 
Tu me foste
namorada,
noiva,
amante.
E Irmã,
Amiga,
Mãe,
Mulher.
É de
justo
que eu
te cante.
Que eu
me encante
até morrer.
E o faça,
e o faça
com prazer!
 
Arnaldo Mesquita, in Dispersos (diversos), p. 194.
 
Sei, hoje, que o Tio foi maior graças ao Amor que lhe guardou sempre.
 
Sei, também, que o seu coração se cansou de saudade.
 
A esta hora, que estejam todos juntos: a Tia, o Tio e o Nanau.
 
Sei que saberão encontrar-se, também desta vez.
 
Já há flores na sua varanda, querida Tia.
 
É a Primavera que vem aí.
 
E o Céu enche-se de pássaros que parecem querer voar juntos para sempre. 
 

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