quando penso em ti, Avô, não me servem os relógios.
fico deitado todo na poltrona enorme da memória e todas as portas sentem a minha espera.
quando penso em ti, nenhum pretérito é perfeito - que porra de língua esta que resolve chamar perfeito ao tempo em que a saudade se conjuga.
mas eu falo de ti muitas vezes no presente - as pessoas que me ouvem, pensam que estás vivo, que ainda ontem falámos até às quinhentas e que é por isso que eu sorrio tanto.
às vezes, apetece-me mesmo enganá-las, sabes?
só por uma vez que seja, dizer outra vez,
vou jantar aos meus avós.
e ser verdade que estás na cabeça da mesa, que obrigas a Vovó a comer mais,
Milinha, anda lá, come mais um bocadinho.
Sabem, A. e R., fui eu que ensinei a vossa Avó a comer!
e a Vovó poder protestar só porque pode, só porque quer, só porque sim.
parou-me o coração, nessa como em tantas outras horas - às vezes, penso que a tua morte aconteceu num outro fuso horário - como em todas as perdas, cá dentro, ainda falta tempo para acabar, ainda há tempo antes de começar a véspera do fim.
Cá dentro, o tempo é outro - em poucos anos, vivi contigo uma vida inteira.
(que não chega.)
Sabes, Avô, hoje é sexta e pousei o relógio.
era bom escapar-me para jantar convosco, não achas?
e no terraço, a aproveitar o bom tempo, antes que passe.
A Mãe sorri quando lhe digo estas coisas - ela sabe, porque me ensinou, este amor sem jet-lag, este amor em que os ponteiros são inúteis e ridículos.
Sabes, Avô, tenho saudades desse tempo sem gramática - o amor das crianças conjuga-se sem verbos; conjuga-se com gargalhadas, com aprender a chamar casa aos braços de alguém.
Hoje, mais do que tudo, queria ter ido para casa - os meus Pais, vocês, a Gó, o A.- e podermos, os dois, tu e eu, pousar os relógios.
(e ser dentro de nós, a mesma hora).
Hoje, a saudade veio no sangue, acho eu.
Fui levar o lixo ao fim da tarde e vi algumas sombras no passeio.
e se uma delas pudesse ser a tua, só hoje?
Sabes, Avô, todos os dias digo à Avó que não tenha pressa.
E digo-lhe, a rir, que sem o meu chão, a vida será um deserto.
A minha família - nós, os que nos escolhemos uns aos outros, os que nos quisemos, nisso de nos vermos todos os dias, de estarmos perto, de não poder haver nenhum nome depois de nós - foi o meu milagre.
Por isso, Avô, lembra a estes sacaninhas que não tenham pressa.
Diz,
Milinha, não tenhas pressa, que os rapazes precisam de ti.
E aos meus Pais e ao A. também.
Quanto a ti, havemos de nos encontrar.
Digo à Avó,
Só me importa a vida aqui.
E, depois, para onde achas que vais?
Avó, que é que achas, malandra?
Hei de ir sempre para onde vocês estiverem.
2 comentários:
Que lindo tudo o que escreve! É sempre um grande gosto visitar este blog! :) RTP
Muito obrigado, querida Professora. :)
Gosto muito de si.
Um beijo com saudades,
R.
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