sobre a desgraçada falta que as mães fazem aos filhos, Avó,
(e desculpa começar por falar assim)
podia deixar-se uma folha branca - sim, toda branca -
e imaginar nunca mais poder continuar-se a dar o que só nasceu para ser dado -
uma maré a que falte das ondas a esperança de um regresso,
uma manhã que chegue sobre as coisas, as ruas e tudo o resto para sempre atrasada
ou um abraço a que falte a carne para que a vontade sossegue, finalmente
sobre a desgraçada falta que tu fizeste, querida Avó,
a mãe com dezassete anos apenas,
tu com quarenta e dois
e, depois, esse deserto de sonhos adiados,
de coisas que tinham que ser ditas -
o amor gasto de repetido,
os olhos embaciados de felicidade,
os teus netos a chamarem-te,
Avó,
e isso não ter podido acontecer
essa maldita doença que nos roubou -
o som da tua voz que nunca ouvi,
as tuas mãos que nunca me levaram ao jardim de tua casa,
a tua letra que nunca li num postal pelos meus anos
ou, apenas, o obrigado que nunca te pude dizer pela mãe que me deste
sim, Avó, obrigado.
aqui por casa, a mãe fala de ti como se te encontrasse em mim e no A.,
A Mãe era assim, meninos, também fazia isso,
e que felicidade a nossa porque a nossa pele também é, afinal de contas, a tua morada.
mas, mesmo assim, Avó, que desgraçada falta tu nos fazes,
um telefone que tocasse só para nós e se pudesse dizer,
Avó Bela, como estás?,
e o meu coração que se põe a imaginar o que te diria,
que cartas te enviaria ou
como gostarias, somente, de ver como a minha Mãe é boa para nós.
42 anos,
e eu ter contado os anos até que a minha Mãe durasse mais -
o medo que tenho, ainda hoje, de coisas demasiado curtas
do que se não diz, do que se não dá, do que se não emenda
a tempo.
isso ou, quando acabei o curso, a primeira pessoa a quem telefonei,
Mamã, acabei o curso,
e, nesse momento, me ter lembrado que a minha Mãe não pôde ter feito o mesmo
e isso me doer como um gume afiado, quando desliguei a chamada
da desgraçada falta que nos fazes, Avó,
das coisas que tinha vontade de viver contigo,
do que te podia ter dito sentado no jardim da tua casa
e, melhor que tudo, um sorriso teu que saísse das fotografias que guardamos
e fosse teu só para mim
ouvir-te dizer,
Ricardo,
e saber que, finalmente, tu me respondes à falta com que te chamamos cá em casa.
sabe, Avó, que o meu coração consegue acender uma luz na tua ausência
e ter a certeza de que, se pudesses, me havias de sorrir,
caminhar comigo uma estrada infinita de verdade e de alegria,
telefonar-me mil vezes e deixar-me gastar-te o nome com um amor guloso
eu sei disso, querida Avó,
mas a falta que nos fizeste, tornou-me a mim e ao A., capazes apenas de um amor vigilante, de um amor de quem anda por perto a medir o pulso e que, mesmo longe, leva no coração sempre uma janela com vista para casa.
querida Avó,
sabe que entro no quarto enorme da nossa saudade por ti, muitas vezes, e, no meio do escuro, desafio a distância que não escolhemos e imagino que, como numa fotografia, nos sorris com a ternura generosa que o coração da minha Mãe aprendeu contigo.
temos saudades tuas, Avó,
se nos ouvires, sabe-te lembrada
se possível, responde-nos,
apesar de nunca ter ouvido o som da tua voz, tive quem, graças a ti, me ensinasse a reconhecer o amor.
Um beijo,
R.
RM|XXV-IV-MMXVII
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