Meu querido Avô Adélio,
só porque o teu jardim se encheu de flores, porque há uma luz quente que acendeu mais a vista da janela do teu quarto e a nossa saudade não deixou nunca de se ouvir,
parabéns,
só porque, sob a sombra das árvores da tua casa, queria poder segurar-te os dedos compridos, ver-te sorrir para a minha mãe com os olhos inundados de orgulho - ficar, sempre, pendurado na varanda de aço florido da vossa cumplicidade sem medida, sem tempo, sem remédio - os dois, para sempre, condenados a uma adoração mútua, a uma caminhada repleta de coincidências que vos fizeram mais unidos na compreensão do verdadeiro sentido de tudo.
só porque, uma vez mais, te queria dizer,
obrigado.
e, enquanto a minha mãe fuma um cigarro e, nas árvores, cantam os pássaros esquecidos de partir, pedir-te que desenhes, que me fales das tuas inúmeras viagens - o pôr do sol de áfrica, o calor do brasil, os hóteis, as saudades de lisboa, a música, os bailes e esses rituais em que a minha mãe era o centro do teu mundo.
os salões grandiosos em que a minha mãe dançou contigo uma música que o coração dela ainda ouve, a tua paixão pelo design nórdico, os teus sapatos entrançados feitos por medida e a tua pose, nobreza e elegância até ao fim.
mas, mais que tudo, por cima de tudo, para lá de tudo,
haver corações que amem como amou o teu a minha mãe,
os dois que liam compulsivamente noite dentro, tu que ias a coimbra se a voz da mãe estava mais triste ou a saudade te doía mais fundo - e vocês entregues sempre um ao outro por uma vida que quis ensinar, a quem vos visse, que o amor sempre nos borda na pele o caminho de casa.
vejo-te nas fotografias - que saudades de ser visto pelos teus olhos e ler escrito neles o amor que nos tinhas, de te ver a perna cruzada a balouçar como se o tempo de viver fosse, então, mais lento, mais longo, mais livre e tudo quase pudesse durar para sempre.
tenho saudades tuas todos os dias e a minha mãe sente falta do bem que só tu lhe fazias.
fala muito do teu nome, relê livros cujas passagens, como caminhos, ela espera a levem até ti e ama-te com a gratidão do primeiro dia.
aprendi com ela o vício dos afectos, o antídoto que a memória é contra a saudade, a finitude, a injustiça de despedidas que não podiam nunca ter acontecido.
e sei, meu querido, que não há corações como o teu.
por isso, por tudo o que me ensinaste e que a gramática do mundo não pode conter, um beijo enorme.
97 anos, farias tu.
pudessem vocês e a minha mãe voltaria ao estio sem fim para dançar contigo a música que o coração dela ainda ouve.
encosto o ouvido ao peito dela.
lá dentro, a orquestra não parou nunca de tocar.
é contigo que ela dança até hoje.
RM| XXVI-VIII-MMXVII
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