isto de ser voz tudo o que te guarda -
os livros, os discos que me deste, as cartas,
e poder neles ouvir-se do teu amor sempre a toada firme
quase como se o princípio de um abraço pudesse sempre começar
e no chão apontasse o pó o caminho para casa
isto de te ouvir passear dentro de mim -
eu, a casa onde tu decidiste que havia de morar o amor
e, desde então, essa ferida que ajudas a curar sempre que as coisas me doem
que o tempo não chega ou não existem palavras para calar-me as perguntas
chegas tu, mamã,
arrumas-me o peito - com jeito, como num livro que conheces de cor -
abres a página certa, reabres as janelas, o ar fresco entra como se, de repente, se pudesse começar de novo,
e eu, ao som da mesma música, descubro que se pode amar outras coisas, aprender outros nomes,
dançar com outros corpos uma felicidade desconhecida
é isso, minha querida,
decidiste, no momento em os nossos dedos se ataram, que eu havia de conhecer o amor.
por isso, minha malandra,
obrigado.
fizeste de mim, ainda assim, uma casa grande - as divisões cheias de rumores de gente que, algures, deixei entrar; as gavetas repletas do cheiro dos enganos do mundo, restos de sonho, cartas que não enviei ou que ainda esperam, de alguém, a resposta merecida - e ser isso tudo, mesmo assim, o lugar onde persiste tanta coisa boa - o ter-se tentado, o ter-se errado, o ter-se emendado, a tempo, o que quisemos, sem dúvida, que permanecesse.
ensinaste-me, mãe, o amor - o convidarmos alguém a pisar-nos o soalho dos ossos; o dizermos a alguém, com vontade, onde se esconde a chave do nosso coração e deixar tudo isso entrar.
mas, mãe, as casas grandes desarrumam-se, às vezes,
sabes, o correio não traz todas as respostas,
as janelas precisam de quem as abra,
e as gavetas de quem, finalmente, as feche
por isso, mãe, diz-me que, se eu precisar, tu vens e arrumas-me,
não me importo que os teus pés pequenos me pisem o soalho dos ossos,
que as janelas se abram e se desenhem na parede, sob a luz da tarde, pegadas do tempo que passa
isso e que ponhas a tocar a música de sempre -
gasta, repetida, decorada, ridícula - nossa.
vem e fica.
as mães ensinam aos filhos o que é o amor e só elas, que os conhecem como a uma casa, sabem onde se esconde, sob a pele deles, a chave suplente que lhes abre, de novo, o coração.
Obrigado.
RM| IV-IX-MMVII
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