Rewind

sábado, 20 de janeiro de 2018

18.01|porque a Avó faz anos,

PELOS TEUS 94 ANOS, 

Milinha, meu amor, 

Toda a minha vida aconteceu sob o azul generoso dos teus olhos. 

E foi também contigo que o meu coração aprendeu a falar. 

Há uma língua que apenas os muito amados falam - essa que é a do sonho, da partilha, da mais absoluta nudez e verdade, do perdão e da mais visceral vontade do outro que possa existir.

Começámos este diálogo há muito tempo, minha querida - as mãos sempre muito dadas, a pele toda escrita como um enorme e fundo baú onde me apresso a guardar tudo de ti - pequenos detalhes, bilhetes que o meu coração adivinha deixados escritos para mim, por ti, para levar na viagem; pequenas sombras, nuvens e inclinações do vento que eu leio como se conhecesse o caminho para dentro de ti que és, afinal de contas, a minha casa.  

Leio-te como a uma oração de luz e de esperança, como um antídoto contra o granito pesado da laje da distância, da saudade ou da tristeza - e repito-te, vezes sem conta, dentro de mim. 

No meu silêncio não existe solidão, jamais me senti sozinho - existes tu, o Avô, o A., os Pais e a Gó - foi, como sabes, por entre as ameias do vosso colo que eu espreitei, primeiro, o mundo. Foi por vocês que eu vi ser possível acontecer a carne dos verbos mais honestos, maiores, mais puros e inteiros. 

Tu sabes que eu te escolho - como eu, só amas verdadeiramente quem te escolhe, quem sabes ter que estar, que ficar, que voltar - que nunca esquecer. A memória é, para nós, um caminho - nele, ama-se mais quem caminha connosco, ama-se mais quem não está longe, ama-se mais quem nos agasalha do frio de certos enganos e quem nos defende até de nós mesmos. 

Afinal, que amor  - se o é e, para o ser, de verdade - que não é, afinal de contas, a mais parcial das coisas, a inclinação de alma mais natural, mais justa, que melhor nos cose por dentro?

Nunca amarei ninguém como a ti, tal como não há um céu igual ao do azul dos teus olhos. 

Outro dia, 

Olho o relógio, são 21h e eu ainda no gabinete.

Atravesso a rua e vou encontrar-te no teu quarto - sorris muito quando me vês. Ficamos agarrados uns instantes um no outro. 

Volvidos tantos anos, sou eu quem te segura nos braços e puxa a conversa, 

Sabes, Vovó, desculpa se, às vezes, o tempo não me chega,

E principio a chamar por ti, a desatar-te os nós da memória - levo-te, pela mão, até onde possamos ser os dois felizes e esquecer-nos do mundo. 

Quando estamos juntos, no céu dos teus olhos, tudo o resto se eclipsa - falo-te do futuro, peço-te que não desistas de viver, asseguro-te que não consigo imaginar um mundo sem ti.

[e não consigo]

E tu - que me fizeste uma casa sem telhado - respeitas a minha ambição, iluminas com a luz do teu amor as curvas apertadas da estrada e, mais que tudo, queres estar lá comigo. 

Por isso, meu amor, obrigado. 

Falamos sem parar um bom bocado  e eu digo-te, antes de adormeceres, 

Amo-te muito, sabes disso, minha malandra, não sabes?, 

E tu, 

Então não sei, pequeno, então não sei. 

Espero que adormeças - deitado contigo na cama onde nasceu o meu Pai, aperto-te contra mim como a uma bóia que me salve. 

Em silêncio, agradeço esse milagre que foi o nosso encontro e tudo o que veio depois. 

Saio para a rua - sem querer, olho o céu. 

Graças a ti, serei sempre uma casa sem tecto. 

Cá dentro, o meu coração não desiste de querer apenas um céu que seja o do azul dos teus olhos e a paz que só ele me dá. 

Parabéns, Vovó!

Um beijo, 

R.

RM|XX|I|MMXVIII

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