Um dia pensei que quem ama olha sempre para trás antes de atravessar uma passadeira.
De facto, amar é esperar que a sombra que nos segue pelos passeios não tenha que ser necessariamente a nossa - que possa, sim, ser a de alguém cujos passos andam, por ali, ensarilhados bem perto nos nossos.
E que o sol, como que a brincar, nos põe a dançar os corpos por cima das lajes do cimento numa coreografia inventada pela luz num fim de tarde quente qualquer.
Eu, pelo menos, dou por mim a gostar de imaginar que quem ama não atravessa nenhum caminho sem pensar no que deixa para trás.
Fui sempre assim - desde pequenino, por cima do ombro, aguardei sempre uma mão que remasse comigo rumo ao que quer que fosse que viesse depois.
Lembro-me tão bem dos nós dos dedos, do abraço das peles, dos braços presos e, sobretudo, de nunca ter medo de atravessar nenhum caminho, de não me parecer nenhuma estrada ampla demais, nada demasiado longínquo ou impossível.
Nunca me deixaram para trás, está visto.
E eu, como posso, tento não os deixar para trás - as mãos que se oferecem, o braço que se estende, as palavras com que somente um coração que fale a língua do outro lhe diz,
Vai tudo correr bem,
E, sempre, do outro lado de todas as viagens, para onde for que a vida nos leve, que se agarrem as mãos, que sejam cegos os nós com que os dedos se entrelaçam e que possa ser eterno o abraço das nossas peles.
Há dezoito anos, Avô, tinhas acabado de fazer 80 anos e ias renovar a carta,
Eu e o A. radiantes por te vermos na rua - um abraço longo e o teu sorriso doce de quem parecia sempre querer convidar os outros a permanecer,
E a nossa maldita pressa em cumprir horários,
Temos que ir para as aulas, Vovô, desculpa,
Vão lá, pequenos,
E o beijo que te demos ter sido o último, enquanto, olhando para trás, te acenámos até chegarmos à esquina, rumo ao liceu.
Até hoje, sinto que chegar a horas a certos sítios é, inevitavelmente, chegar demasiado tarde a outros.
Desde então, o olhar para trás - fixar o outro antes que o poente seja noite, oferecer-lhe os ossos, o abraço da carne, é como um vício.
Quem ama, nunca atravessa nenhum caminho sem olhar para trás.
Eu e o A. nunca fizemos nenhum caminho sem estendermos a mão.
Estamos todos cá, Avô, felizmente.
Eu, ainda assim, olho por cima do ombro antes do princípio de cada viagem.
Vejo o teu sorriso doce, o teu aceno feliz e, na dúvida, estendo a mão.
Espero por ti no início de tudo, todas as vezes.
O meu coração espera por ti - o semáforo suspenso até que regresses.
Um beijo do teu,
R.
RM| VII-VIII-MMXVIII
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