"Ningém sabe como nem quando a Humanidade começou a conversar. Há várias teorias, mas a maioria delas é só conversa.
Sabe-se, porém, uma coisa muito mais importante e, para nós Portugueses, motivo de orgulho e de prestígio internacional. É que foi aqui, em pleno Portugal continental, que dois compatriotas nossos inventaram a arte de desconversar. Já lá vão mais de oitocentos anos. Um cronista anónimo registou o primeiríssimo caso de desconversa, num encontro, em Guimarães, de Dom Afonso Henriques com sua mãe, Dona Tareja. Disse a senhora: "Então queres lutar contra a tua mãe? (segue-se um gatafunho indecifrável que talvez seja " Ó meu malandro", mas não garanto) Respondeu o fundador da Nacionalidade: "Eu? Lutar contra a minha mãe?" Retorquiu Dona Tareja: "Isto está de chuva, está..." E Afonso: "Se não estiver sol..." E Tareja: "Deixa lá que faz bem aos gatos..." E finalmente o filho, historicamente: "Pois - ouvi dizer que hoje em dia não querem outra coisa senão pôr os bigodes à chuva..."
Assim se faz a História. Não passariam mais de sete anos até se dar uma segunda ocorrência. E chega-se à grande epidemia da desconversa de 1580-1640, durante a qual a população inteira do país passava o tempo a desconversar com os Castelhanos. Dizia um (eu traduzo): " Este vostro país é mui guapo." E respondia o portuga: "Então, se é guapo, porque é que não guapas lá para a tua terra?" O castelhano, sem compreender, sorria e dizia: "Perdão? Não percebi..." O português, contente por poder continuar a desconversa, respondia: "Não percebeste? Estava a dizer que vocês castelhanos só me fazem lembrar a presença cubana em Angola..." (Note-se que um português, só para desconversar, é capaz de ir ao ponto de prever o futuro.)
Hoje, a desconversa está tão rotinizada em Portugal que às vezes recorre-se a especialistas estrangeiros, como o Professor John Searle, para distingui-la da conversa propriamente dita. (CT. "Para uma Teoria da Descominicação, Boletim Brasileiro das Grandes Traduções, Foz do Ipiranga, 1985). Pergunta-se se a Avenida Almirante Reis é para a esquerda ou para a direita e a resposta não se faz rogada: "Dê-me uma esmolinha para o Santo António..." Dá-se a esmola e diz-se: "Santo António? Mas o Santo António não é em Junho?", e ela, já de caminho: "A Avenida Almirante Reis é em Lisboa, não é aqui no Porto..."
Só a desconversa académica dava uma tese de doutoramento. Recode-se. Um gordo e um magro a falar num colóquio sobre " O Pescoço". Ambos correm atrás do microfone volante que um empregado enfastiado vai sabotando para se distrair. Ambos parecem falar "um" para o "outro", mas na verdade interrogam-se um contra o outro, dizendo que " Já Foucault dizia que um pescoço é mais um poder indefinível do que um poder segurar a cabeça.", entre outras coisas sobre pensadores franceses e as capas da colecção Vampiro. A comunicação mais real entre os dois ainda é o feedback a sair pelas colunas.
Aos Portugueses, porém, não bastava desconversar. Somos um povo muito positivo e por isso levamos a coisa mais longe e inventámos o desmentir, arte retórica que pode dar uma nova frescura à desconversação. Um polícia reboca-nos o carro, conluiado com aqueles energúmenos de fato-macaco que diariamente arrastam a fama dos "pronto-socorros" pela lama e nunca têm a coragem de nos olhar directamente nos olhos. Depois de meio quarteirão de sprint (ao menos isso, uma excelente preparação física para um enfarte do miocárdio), chegamos ao pé do "Senhor Guarda". Só de dizer "Senhor"com os dentes tão cerrados arrancam-se da boca dois ou três pivots. E dizemos: "O Senhor Guarda desculpe, mas não se importava de me devolver o carro, tenho pressa, tenho uma tia a morrer no hospital e uma explicação de matemática às cinco e meia"
O guarda puxa do bloco - hoje em dia são tão chorudos os lucros da PSP no combate feroz ao crime do estacionamento, que até dão blocos de multas em papel Elco James - e diz cordialmente, sem poupar uma só palavra para tranquilizar aquele cidadão aflito: "Documentos..." Ora, os polícias portugueses são os mais bem-educados e compreensivos da Europa periférica, mas às vezes calha um menos afável que de algum modo conseguiu resistir aos novos cursos de formação da PSP. E pronto. Aparece sempre nesta altura (e que se lixe, porque é fácil escrever para Inglaterra a pedir que transfiram a assinatura das revistas para o Limoeiro) perguntar: "Desculpe, Senhor Guarda - não percebi... qual é o sujeito e o predicado dessa oração?" Procura-se nos bolsos e não se encontram documentos nenhuns, à excepção de um talão de lavandaria e dum plástico com dois bocados grandes de haxixe: "Deixei-os em casa, Senhor Guarda, a minha mulher teve de ir à Caixa leventar a minha pensão de invalidez e eu... pois... olhe... veja lá... pois não os trouxe, não." O guarda dá um grunhido na direcção do reboque, grave e curto, como o som de um javali a fazer testes para um spot de pastilhas veterinárias contra a rouquidão. Isto significa, no código secreto entre polícias e reboques, "Anda lá com essa merda..."
O carro começa a andar e nós, com o nervoso ou a valentia, insistimos: "Este carro é meu, Senhor Guarda - quer que eu lhe diga o que tem porta-luvas?" É aí que o polícia se esmera na oratória: "Sem os documentos comprovativos da propriedade da viatura, a viatura é considerada de propriedade incomprovável, pelo que devrá dar entrada no paque da Polícia de Segurança Pública de Alpalhão, até comparecer o proprietário da viatura, munido dos devidos documentos."
Se dissermos: "Estou-lhe a dizer que é meu", olhando para aquela triste carcaça do primeiro INSU de três rodas a ser montado em Portugal, corria o ano de 1952, e cismando se vale o não a pena aproveitar esta oportunidade única e nunca mais o ver, o guarda diz logo a frase mágica: " O senhor está-me a desmentir?" E aí mais vale continuar a desconversar: "O Senhor Guarda desculpe perguntar, mas o senhor não é aquele rapaz alto que aparece a fazer wind surf no anúncio da Coca-Cola?"
Desmentir está para desconversar como mentir para conversar. Quando se insiste que "Pois, estou-te a desmentir, estou! Alguma vez foi preso o meu pai?", outro, começa logo a desconversar: "Ó pá pronto... Fui eu que imaginei... Houve um gajo qualquer que chamou por mim da carrinha e gritou para eu te dizer que não te esquecesses de tomar o antibiótico, mas deve ter sido impressão minha..."
Desconversando e desmentindo, é ainda pelo espírito positivo que o português acrescentou o Desfazer, com a agravante de já não lhe bastar uma única negação. Os prefixos negativos são como a heroína: quanto mais se usam, mais se precisam de usar. E é assim que o verbo Desfazer se faz sempre acompanhar por um "Não." Imaginem dois cineastas portugueses a fazer repérages a uma garrafa de Cutty Sark no Metro e Meio. "Então?", aventura-se o que se julga mais talentoso, "O que é que achaste da minha última fita?" O outro olha para ele, ajusta o foco e consegue finalmente o enquadramento desejado: "Quando é que estreou?" O talento ri-se, gozando o frissom de ouvir alguém dizer que se "estreou" uma obra dele, como se fosse um filme normal. "Ó pá, tu não te lembras? Foi a fita que inaugurou o Estúdio 444!" De repente, o magro perde o balanço do uísque todo, fica sóbrio e regressa, relutante, ao mundo dos vivos: "Ó pá, não é para desfazer, mas quando me lembro de ter visto a tua fita sinto que é a melhor maneira de me identificar com a memória traumática dos sobreviventes de Hiroshima." O gordo pensa um pouco e diz: "Parece que agora vou fazer outra..."
Desconversando, desmentindo e não desfazendo, os Portugueses falam entre si como se estivessem condenados à leprosa companhia uns dos outros. Perdeu-se entretanto a arte de conversar. A ideia de duas pessoas numa sala de estar, sem música e sem vídeo, a trocar opiniões acerca de assuntos interessantes, sem copos e marmeladas, é o suficiente, em casos graves de envenenamento, para pôr qualquer adolescente a vomitar.
Hoje desconversa-se e desmente-se. Até a arte de mentir está pela hora da morte, porque, não havendo hipótese de conversa, nunca surge a oportunidade de mentir. Antes de se contar uma boa mentira, daquelas que dantes se diziam "por dá cá aquela palha", só para ajudar a passar o tempo ou a camisa do marido a ferro, já há alguém, lançadíssimo, a desmentir-nos.
Mas assim também tem graça, convenhamos. Tem cá uma graça. Até tem. É mesmo de morrer a rir."
Miguel Esteves Cardoso in "A Causa das Coisas"