Rewind

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Caim de José Saramago

Há já uns dias acabei a leitura de "Caim". Não sou daqueles que faz da polémica a sua religião. O meu amor pela escrita de Saramago é já um amor antigo - um desses agigantado pelo prazer de cada reencontro. Por isso, "Caim" seria lido, independentemente do folclore que veio depois.
Portugal é um país estranho. Sempre o foi. No meio da tacanhez, do lodo ingovernável que nunca deixamos de ser, às vezes, lá aparece a genialidade vestida sob a forma de gente.

Saramago é um desses motivos de orgulho.

Não percebo pessoas como esse ilustre desconhecido Mário David que assume o papel do SEF e quase expulsa Saramago de constar na galeria dos que muito nos orgulham. Mas a bondade das intenções está boa de ver - Mário David, um deputado europeu da Nação - engravatado como manda a praxe é já sobejamente conhecido pelos disparates para os quais, ao que julgo saber, a sua função não o habilita. Foi este mesmo, sim, este guardião da moral pública que quis que o governo português (esse defunto e, infelizmente, renascido há dias das cinzas) fosse declarado inimigo da liberdade de expressão no Parlamento Europeu, por causa do episódio do Jornal de Sexta feira e que afirma que Silvio Berlusconi, por seu turno, nada atenta contra ela.

Há que dizer duas coisas e duas apenas: em primeiro lugar, senhor deputado, anda a defender a Manuela errada; em segundo, há uma coisa que Saramago tem e chama-se coerência.

Virtudes raras não abundam, é verdade. Mas no seu caso a ausência é chocante. Deus tem destas coisas.

Quanto ao livro, o motivo por que viemos até aqui hoje, e em hora de descanso, este não desilude. Para os que dizem que a Bíblia não deve ser interpretada literalmente, também esta obra de Saramago não o deve ser. A sê-lo, rapidamente se descobre um domínio perfeito e absoluto do mister de contar estórias. Se não se for literal, depressa se descobre a beleza, a ironia fina, o vigor e o ritmo e cadência com que José Saramgo cria imagens, constrói personagens e nos delicia.

A Literatura sempre foi um espaço de liberdade. Para os que querem cerceá-la, lembrem-se que, em Portugal, a polémica pelo menos tem a benesse de lembrar aos olvidados compatriotas de que há questões a levantar; dúvidas que estripar. Bem vistas as coisas, José, bem que prestaste um bom serviço a esta Nação de ingratos. Cá para mim (não te chamo camarda porque isso seria ir longe demais, até para mim, um homem lúcido, mas às direitas.) podes continuar a ser Portuguesinho da Silva. Peço-te é que, ao contrário da maioria de nós, mantenhas tudo o que felizmente te torna tão diferente.

Por último, não consta que a implementação dos princípios bíblicos seja condição e critério de atribuição da nacionalidade. A sê-lo muitos dos arautos dos bons costumes, esses que como o senhor Mário David falam muito e acertam pouco, seriam um conjunto orgulhoso de numerosos apátridas.

O lugar onde moras, ainda.

A casa há-de ficar vazia, um dia. Depois da tua partida, há uns anos, tudo ficou ainda no mesmo lugar de sempre - os quartos como o retrato fixo do tempo que passa; os corpos cresceram; as pessoas entraram e saíram. Mas, depois de ti, a ausência ficou ainda mais funda. Ou foi mesmo a ausência, essa que chegou quando saiste.
Por vezes, penso que crescer é ir perdendo. Acho que nunca cresci até ao ponto em que poderia perder-te. Sei, hoje, que nunca se cresce o suficiente para aguentar perdas como a tua.
A casa continua a mesma - os retratos de prata como fragmentos de um tempo de infância longínqua que não recordo, mas que as imagens me dizem ter sido feliz.
Vejo-te com o peso de alguns anos, mas a minha imagem de ti, enquanto crescia, foi sempre essa - a franqueza e a rectidão num rosto marcado de pequenas dobras a fazer lembrar papeis antigos.
Poucas pessoas são esteios de uma vida. Tu foste o chão onde aprendi a andar. O céu de quase todos os voos.
Contigo aprendi que os silêncios podem dizer muito - que quase tudo se pode inscrever e gravar na intensidade de um abraço ou na forma firme como se segura na mão de uma criança, enquanto ela cresce.
Talvez por isso nunca tenha gostado de apertos de mão frouxos. Fica-nos muito daqueles que amamos.
A casa continua lá. Vou lá menos vezes, agora. Acho que aprendi a aceitar que a distância não apaga os lugares onde sabemos pertencer.
A minha recordação de ti é um filme silencioso; um contínuo que dói menos quando sinto que a tua ausência me vem visitar. É um antídoto contra cada momento feliz ou doloroso em que não estás lá.
Nunca se chega verdadeiramente a aceitar a morte - o que aontece é que uma ausência permanente nos ensina a caminhar por cima dos buracos que se abrem na espessura frágil de uma vida.
Passaste a morar nas palavras. As tuas palavras que recordo dão-te vida. Frases com uma clareza lapidar ditas em longos fins de tarde lassos no campo.
A terra verde a perder de vista. A nossa terra verde, em que o barro do chão engoliu passos dos que já nos foram antes - os que vieram antes de ti e de mim. A memória como um lugar onde sempre visitamos quem perdemos. Sem saberes, ensinaste-me que te posso visitar sempre.
Com o respeito pela memória que me ensinaste nunca te perdi. Hoje somos felizes, por isso. Porque todos continuamos contigo.
Presa nas palavras vem a luz e a felicidade egoísta dos fins de tarde por entre as vinhas e o horizonte desocupado, ao fundo, por entre o casario branco semeado no monte.
Aprendi a viver contigo de outra maneira. E é dos sítios onde o que me ensinaste me trouxe que te recordo sempre.
(Sinto a tua falta.)
E quase sinto, de novo, o teu abraço forte e o teu riso franco. E as tuas palavras são como os retratos de prata lá de casa - o lugar onde moras, ainda.
E sempre, avô.

A vida, de novo.

Pensava que tudo começa nas palavras. Ou, precisamente depois delas.
É depois de se fixarem as palavras que se nos enchem as mãos ou que, pelo contrário, ficamos sem nada.
Por isso, escrevia. Porque as palavras são dedos que ficam na pele depois dos corpos se terem já abandonado. Mas existem ainda os dedos e o toque que se pode repetir vezes sem conta contra o cansaço do vazio.
Ele sabia que as palavras ajudam a viver. E, através delas, podia haver redenção. A redenção que nos sai do corpo, sob a pele das linhas.
De novo, acontecia o sol a derreter-se na calçada de uma rua ensarilhada numa cidade qualquer.
De novo, os soluços da chuva e os olhos que te veêm com o olhar perdido no cinzento revolto do céu. De novo, voltava o tempo que morria do lado de lá da janela com a vida como o nosso triunfo sobre ele.
E, enquanto o véu das palavras ia revelando o eco do tempo - em passos seguros de um caminho já pisado - de novo, voltava a doçura da tua pele ou a meiguice rouca da tua voz.
E ele podia demorar a atenção num gesto já desfeito em cinzas; podia desenhar uns olhos com as palavras - refinando o traço, apurando o brilho que eles tinham numa noite que já não vem no avesso dos dias.
Por isso, gostava das palavras. Nelas existe o tempo e a exacta medida do quanto as coisas duram em nós. Com as palavras nenhuma despedida chega a ser definitiva - pelo menos não enquanto quisermos voltar ao que, para nós, ainda não acabou.
Nas palavras somos senhores do tempo. Elas prolongam-nos as horas num tempo que já foi. As palavras são, em certa medida, uma promessa de eternidade.
Vive tanto do que já não existe nas palavras - alguém que perdemos; um lugar em que fomos felizes com alguém. Com as palavras tudo pode permanecer ou brihar mais contra o escuro do vazio.
Por isso, escrevia. Para que a vida tivesse a justa medida do que as coisas era para si. E para que continuassem a sê-lo - apesar de muitas delas já não serem dele.
Pelas palavras nunca somos desapossados - continuamos a percorrer o mesmo caminho sem que o chão nos fuja, debaixo dos pés.
As palavras são o familiar - o lugar onde se reconhece a nossa identidade; onde fica presa a intensidade de cada deslumbramento ou miséria.
As palavras são a vida que continua por cima do que falha; o cimento que une o que fica depois da perda. O chão onde nasce o fruto do que principia - alimentado pelo sangue do que, finalmente acabou.

Amar

Amar é não ter corpo
E ter dor
Amar é não ter olhos
E ter lágrimas
Amar é ter chagas
E não ter pele
Amar é ter palavras
E não ter voz
Amar é ter sempre mais do que o que somos
Por nos nascer na pele
Um nome que não é o nosso.

Ricardo Pinto Mesquita

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Mariza@Coliseu do Porto_29.10

Eu vou!

Um risco no céu

Há dias que começam assim - o horizonte esgotado como a esperança debaixo do cimento do desalento. Dias com a sensação de derrota antes mesmo do começo.
O Mundo a parecer, de repente, uma longa e profunda sensação de aridez - o corpo de pedra e granito dos prédios; os passeios e os carros que passam - tudo demasiado concreto, nessa nudez despida de sentido. E a sucessão do tempo como a moldura de uma paisagem e apenas isso.

Isto aqui pode, de repente, ser somente isto: a pedra das estátuas uma harmonia cujo som não se ouve; a pintura como uma morada que não habitamos; a música palavras que não nos dizem onde mora a paz.

E, nesses dias, ele procurava imaginar tudo de cima. E via o céu num desses dias de luz, beijando as folhas ainda presas nos poros do asfalto.

E havia um risco no céu - nessa enorme planície azul, um risco percorria um caminho, que os seus olhos seguiam. E pareceu-lhe singelo esse simples traço no manto imenso e uniforme - uma pequena conquista.

E lembrou-se de que os dias como esse - com o traço baço da dúvida - podem servir para atentarmos na parte e não no todo: na nossa casa, a lareira acesa e o mar que nos vê a vida pelos vidros das janelas; nos sorrisos abertos como braços que nos acolhem; no curar das feridas depois da distância ir morar nas nossas costas.

Há dias assim: em que o sentido das coisas parece morrer sob o corpo moldado pelo hábito. Mas, nesses dias, ele pensava no sentido muito maior que faziam as pequenas coisas: alguém que chega para nos mergulhar numa gargalhada; alguém que partilha um segredo ou um beijo longo numa esquina qualquer.

Ele pensava nas imagens em cujo muro se inscrevera o seu passado: eis rostos felizes; corpos pequeninos donos de expectativas enormes.

Os mesmos prédios e a vida, às vezes, como uma valsa mecânica nas ruas; o carvão escuro das fachadas e o chumbo reflectido no espelho dos passeios.

Sempre houve dias assim - em que o Mundo não fazia sentido nenhum ou, o sentido que fazia era apenas esse: o dos lugares onde mora o que somos.

E, de novo, lembrava - agora com o corpo maior e os sonhos, por vezes, menores - que não importa o todo. Importa precisamente essa parte onde mora a vida, presa no olhar de quem sempre nos espera; esse nosso caminho que abrimos por entre o que não dominamos e, no fundo do qual, sempre existe luz.

Como um risco no céu de uma manhã de Sol.

domingo, 11 de outubro de 2009

Tears for affairs by Camera Obscura

Noite

Há noites que desejava se prolongassem indefinidamente. Noites que, como grandes goles sôfregos, nos engolissem por inteiro. Há na noite essa espécie de consolo - como se finalmente se pudesse respirar fundo. E, então sim, deixar que o compasso do sangue ganhe finalmente voz, enquanto as bátegas da vida cessaram.
A noite é sempre só nossa. Ou para quem nos pode ou consegue ver de perto. Como se num fundo negro apenas se visse o nosso rosto - esse que só alguns conhecem verdadeiramente.
A cidade ilumina o seu corpo - pequenos pontos de luz e as vagas amplas e serenas do silêncio.
E isso como uma espécie de trégua. Há dias a que não pertencemos. E quando, enfim, chega a noite sabemos o que tanto nos sobra ou não nos chega.
Poucos ficam connosco à noite - esses com quem partilhamos a espessura e o volume do, tantas vezes, indizível. Esses com quem partilhamos a segurança de se poder ouvir o silêncio.
E surgia, então, esse desejo de que algumas noites pudessem engolir os dias. De que ainda não fosse tempo de retomar os gestos que o mundo diz pertencerem-nos.
A noite é, então, o tempo das ausências ou dos excessos. E poucos nos conhecem nessas horas - quando ao espírito falta ensejo ou quando lhe sobra o tempero.
A esses aprendemos a associar as noites da nossa vida - os que partilham connosco as falhas que mais ninguém vê, ou os desejos que mais ninguém acende.
A noite talvez nos diga a verdade. Se passarmos os dias a fugirmos de nós mesmos, talvez a noite nos diga o que fizemos da vida. Ou o que a vida fez de nós.
Gostava quando as noites se prolongavam indefinidamente. Porque havia horas em que lhe sobrava o desejo e, outras, em que lhe faltava a medida exacta das coisas. E quando sempre chegava alguém - esses rostos familiares, ele percebia que há na vida coisas que se tornam bocados de nós mesmos - que nos faltam ou nos completam, consoante as noites da nossa vida.

sábado, 10 de outubro de 2009

Vanished by Crystal Castles

Respiro

Respiro conta a história de Grazia, Pietro e dos seus três filhos. A primeira é a personagem central. Numa aldeia da ilha de Lampeduza tudo decorre com normalidade - os homens pescam e as mulheres ajudam-nos e cuidam dos filhos. Mas Grazia não é assim -dona de um espírito livre e incoformado cedo atrai sobre si as atenções de todos. Pietro, amando-a incondicionalmente, finge ignorar os humores da mulher até que, tornando-se Grazia uma presença cada vez mais comentada, todos decidem enviá-la para Milão para tratamento.
Pasquale, um dos seus filhos, protege a mãe e ajuda-a. Tudo para os manter a todos unidos. Uma excelente reflexão sobre o peso das convenções e, sobretudo, uma lição sobre o amor.

Com uma belíssima fotografia e uma perfeita Valeria Giolino, Respiro, a primeira longa metragem de Emanuele Crialese, acabou por ganhar na Semana da Crítica no Festival de Cannes, em 2002.


O carteiro de Pablo Neruda. Il postino

Há muito que o cinema italiano nos habituou a histórias simples - histórias intensas, verdadeiras mas contadas sem grandes artifícios. "O Carteiro de Pablo Neruda" é uma dessas. Adaptado para o cinema, o filme conta-nos a história do escritor chileno Pablo Neruda e de Mário, o seu carteiro e, mais tarde, companheiro e amigo.
Encontrando-se exilado em Itália por motivos políticos, Pablo desenvolve por Mário um enorme afecto. É, aliás, o escritor que o acompanha no seu amor por Beatrice Russo. Uma trama plena de momentos verdadeiramente profundos onde o humor, o amor e a amizade tecem uma história inesquecível. Recheado de diálogos muito ricos; de um lirismo e intensidade muito próprios este é um daqueles filmes que são um testemunho - um testemunho desse reduto de raridade e beleza que dificilmente se encontram.

Curioso é pensar que o actor e argumentista Massimo Troisi (Mario Ruoppolo) morreu, de crise cardíaca, apenas doze horas após a conclusão das filmagens. Dele fica um papel brilhante, merecedor do Óscar para melhor actor, em 1994. E a certeza de que as coisas maiores do que nós, essas, nunca morrem.

O Sr Breton e a Entrevista de Gonçalo M. Tavares

Há livros que nos esperam sem o sabermos. E, no caso deste, quem o escolheu sabia o que fazia. Um bom presente, portanto. O reencontro com Gonçalo M. Tavares foi para mim mais emocionante do em "Jerusálem".
Esta obra é um breve repositório de palavras - breve no sentido de que a narrativa é curta, mas funda no sentido em que o autor cava fundo no desenrolar das questões. Um discurso profundamente reflexivo retrata o Sr. Breton num monólogo - um monólogo que fica sem resposta. No papel ficam as interrogações- essas que observam a poesia e lhe tentam diagnosticar o carácter; essas que procuram captar-lhe a pulsação e traçar-lhe o retrato fiel.

Surpreendente a temática neste escritor - Gonçalo M. Tavares é a voz meticulosa e exacta de narrativas calculadas. Ao vestir a pele do Sr. Breton, M. Tavares é como um relator de um monólogo que o próprio André Breton poderia ter tido. Em frente de um espelho, com um gravador pelo lado. Numa casa de um bairro qualquer.


Obrigado J.


"4ª pergunta:


Tenho a convicção de que um escritor acredita mais na palavra deus do em Deus propriamente dito. E este modo de colocar a linguagem no quarto principal do palácio não é de forma alguma exclusivo dos poetas, pois também os que trabalham com leis confiam mais nas palavras do que na vida em geral. Ou seja: confiam menos nas coisas que vão acontecendo antes ou durante a existência do verbo do que no verbo propriamente dito.

Para descrever o aparecimento da Surpresa no mundo não há decreto-lei, mas haverá certamente um verso. Para a descrição da Repetição não existirá um verso, mas um decreto-lei que a entende, explica e prevê. A vida inteira encontra-se, assim, coberta por palavras. Apenas com vinte e seis letras se dá nome a todas as coisas do mundo, se explicam os inteiros movimentos de todas as coisas do mundo. O que se conseguiria, então, se o alfabeto tivesse vinte e sete letras? Há quem considere, aliás, que o brutal desconhecimento de Deus se deve precisamente à falta desta última letra do alfabeto. E a qualquer Língua falta uma última letra. Terminámos cedo demais e, assim, ficámos com os Mistérios no mundo. Mas isto é outro assunto, Sr. Breton. O que lhe queria mesmo perguntar, Sr. Breton, surge, afinal, de uma outra preocupação, e é esta: será que só a realidade onde a expectativa existe é que se pode transformar em verso? Isto é: poderá ser a poesia entendida como os momentos (plural) que antecedem o momento (singular) em que uma cadeira, por exemplo, se parte? Ou, dito de outra forma assim definitiva: parece-me que a poesia é, nas palavras, o momento em que a linguagem está prestes a partir-se em dois. E porquê? Porque aí foi colocado um peso excessivo: os versos pousam palavras sobre a linguagem, palavras que, lado a lado, pesam mais do que o suportável. E a frase pode nunca cair, mas até ao fim dos dias promete cair, ameaça cair. E cairá.

Ou não? O que lhe parece, Sr. Breton?"