Visitei a casa como ao sabor de um desejo; uma vontade última de chegar a um lugar com o tamanho e a dimensão do familiar, do reconhecido que é justamente o lugar onde sentimos que tudo o resto se relativiza ou se amplia, por ser visto desse lugar seguro que é a pertença.
A casa continuava na curva, com o seu terraço aberto como um ventre sobre uma imensidão de verde. Abri o portão como se quisesse surpreender a vida no seu curso, como se quisesse não ser notado. Reparei como os cheiros continuavam os mesmos - as flores como um lençol verde bordado de cor. A mesma calma banhada de luz e a casa sozinha como um farol que sempre indica onde acostar. Reparei na pedra que se ergue na fachada - a data da construção gravada como um nome. Há datas que são como nomes e que se usam como pretexto para se falar de alguém. A casa cheirava a tempo; o tempo podia sentir-se em tudo: nas árvores plantadas no tempo dos bisavós e até antes; os móveis com uma história de mãos e de vidas presas no cheiro a madeira; as porcelanas guardadas como memórias de parentes e afectos antigos. A mim sempre me lembraram a persistência do homem sobre a fragilidade da vida e dos laços. Os quartos e as janelas com vista.
Acredito que cada casa veste o peso de quem a habita. Percorri toda a extensão do terraço e pude ver os telhados semeados entre as vinhas e as quintas com os seus muros velhos cobertos de musgo e idade. Sorri ao pensar que são o equivalente aos jardins verticais dos dias que correm. Vi a terra a que me habituei a chamar nossa, não pela propriedade que, sem mais, me lembra uma forma tosca e sórdida de existir. É nossa pelo apelo da terra e da memória que nos surpreende e banha o rosto como o vento que bafeja ou atinge a casa nas noites agrestes do Inverno ou amplas do Estio. A lembrar o compasso de um amor antigo.
Vêm aí as vindimas e o vinho ganhava grau nesses últimos banhos de sol antes da colheita. E veio-me à lembrança essa infância com cheiro a terra e os passeios contigo no colo da paisagem. E de como a casa se enchia de gente e de ruídos como num ritual que tinha a sua religião. A tua fé sempre foi composta da luz do sol e da natureza que brinda os homens e o amor do seu trabalho.
Lembro-me do respeito que os trabalhadores te tinham. Da forma como te olhavam quando lhes falavas enquanto comiam na longa mesa posta na adega. O respeito acende de uma forma muito particular o olhar, com uma luz única que lhes moldava o rosto e os modos. E tinha orgulho de ti.
A casa estava cheia por esses dias, dias de campo e de horas de trabalho e de comunhão. Todos nos mudávamos para lá e podia encontrar a avó no jardim com os seus olhos de um azul que sempre achei fazer o céu ciumento. E tios e tias, primos e pais, como que cozidos numa fôrma própria e só nossa.
Envelheces-me no sangue que é, como o vinho, o néctar onde se molda o sabor das coisas depois da passagem do tempo. Mas nunca a tua perda me deixa de ser precoce como, de resto, o são sempre as daqueles por quem nutrimos essa espécie de vício de alma e de sangue que é o amor verdadeiro.
Relembro os retratos da vossa juventude, tua e a da avó, especialmente aquele que, como sempre me contaram, marcou a vossa primeira saída como namorados. O teu rosto firme e o olhar profundo e aceso; a avó com o olhar amplo como uma manhã de Verão em que a luz do dia se assemelha muito a uma promessa de felicidade; o vestido leve e vaporoso e um belo colar de pérolas de três fiadas. Sempre que a avó passa por ele vejo como os seus olhos se alteram. Faz um silêncio sincero como se se voltasse para dentro a ver o filme que vos conta e que ela teima em rever, no tempo em que os vossos rostos não tinham os pequenos sulcos, como um itinerário da vida e da personalidade, que vieram depois. Curioso que apareçam quando já demos frutos na vida. Como se fossem vestígios de uma grande vinha cujo destino se cumpriu.
Visitar os lugares é como visitar as pessoas, devotar-lhes o mesmo amor que vive sobre as ausências. E a casa enchia-se, de novo, desse rumorejar de passos e ladaínhas como se reconhesse no peso dos passos alguém do seu ventre. Esperei pelo pôr do sol. Sempre os admirei com essa promessa de proximidade que a noite representa. À medida que vamos envelhecendo a noite custa mais passar. Talvez porque nos lembre da perda e da distância.
Volto inúmeras vezes às quintas e à casa que tem o teu nome escrito na data de construção na fachada. É anterior a ti, muito anterior ao nosso laço que essa terra fez maior e mais fundo. Mas é de ti que ela me lembra.
Voltei com a alma cheia. E olhei para o número na fachada antes da casa desaparecer na curva. E pude jurar que a data inscrita era a daquele dia. Porque nunca é tarde para se ser criança num promontório sobre um mar verde. E o respeito acende-me o olhar. E, com ele, a saudade que é o chão que há de ter sempre as minhas pegadas ao lado das tuas por mais que o tempo as pise, como às uvas as pisam as pessoas, avô.
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