"The only way of catching a train I have ever discovered is to miss the train before." Chesterton (1874 -1936)
Rewind
domingo, 25 de dezembro de 2011
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
das coisas simples.
Nunca houve Natal sem a nossa Gó - a Gó dos doces, das travessas imensas e saborosas, das mesas bem postas, do sorriso doce e olhar iluminado.
Nunca houve Natal sem as suas mãos mergulhadas com carinho nas receitas, na azáfama de encenar o espectáculo dessas noites longas e felizes.
Nunca houve vida feliz sem o condão dos seus braços sempre abertos, da promessa que guardou no peito - essa que a põe feliz quando reencontra a minha avó. São como duas amigas - "minha senhora" é a forma da Gó guardar o seu lugar, esse que é só dela, esse que lhe diz onde pertence que é no meio de nós, sorridente e de olhar matreiro e bondoso.
Todos sentados numa mesa - eu, encantado por a ouvir falar desse tempo em que aquela começou a ser a sua casa - a casa onde, mais tarde, corri pelos corredores a chamar por ela, pelos meus avós, pela minha família onde ela firmou lugar bem fundo.
Este tempo é o tempo das mesas preparadas com carinho, da cumplicidade com que desabafamos as nossas coisas como dois bons amigos - vejo que fica feliz quando lhe falo com a paixão que nutro presa no eco das palavras e na acalmia do corpo.
Chegam as suas irmãs - um colégio de mulheres gratas, humildes e bondosas. Todas sorriem quando nos vêem na mesa - sabem há muito do amor que lhe guardamos, à nossa Gó das missas a um Deus bondoso e de braços enormes e afago terno.
A saudade que lhe tenho nunca morre - guardo- a como uma espécie de prova da resistência das coisas, da sinceridade dos afectos e da firmeza da lealdade.
Tudo muito simples - aquelas mulheres unidas desde um tempo que principiou antes de mim, as saudades que guardam uma da outra, o chá que bebem, gracejando ao lembrar o tempo que foi o da conquista, da luta, das crianças, da criação desse laço imaterial maior do que a vida.
Vivo para guardar isto cá dentro - agradecer a tempo, abraçar a tempo, rir a tempo e descobrir o prazer imenso dessas coisas simples que uma tarde todos juntos nos pode dar.
A Gó sabe do amor que tenho pelos meus avós - viu-o, acarinhou-o e orgulhou-se de nós, sempre. E sabe aquele que guardo por ela - a minha família é também ela com o seu carácter erguido de grandes pedras, da fé que a move de encontro a mim e ao A..
Sei que reza por mim, que nos reclama como um pouco seus também, sabendo que nunca a deixaremos.
Observar e sentir que a vida só pode ser isto - o bailado quente de um chá, a minha família por perto, rir com vontade ao saber que os meus lhe iluminam o olhar como se fossem os dela.
Não conheço maior exemplo de gratidão, de fé como um véu de luz quente que nos faz o abrigo uns dos outros no caminho.
Este é o tempo dela - o que nós somos não acontece da mesma forma, se ela não estiver por perto, se não lhe apanhar no olhar esse sorriso que me envia sob a forma dessa certeza doce de que fica.
Nunca houve um Natal sem a nossa Gó - a Gó das conversas pela noite fora sobre a infância do meu pai, o meu avô, a minha avó e a minha mãe e o A.
Nunca houve vida sem ela - sem esse bocado mais que conseguimos ser só porque a temos, porque nos guarda com o verde dos seus olhos e os desejos sinceros do seu coração.
O tempo melhor da minha vida é este - o que passo com as pessoas que me dão forma e espessura aos dias, que me fizeram nutrir pela vida um fascínio que nasceu de termos partilhado todos o caminho.
Enquanto a tarde passa, descubro que não saberei nunca viver sem isso - sem essa sensação de encantamento, de fascínio, de gratidão e felicidade que me nasce de ter essas pessoas, cuja missão foi tão maior, tão luminosa, mas humilde.
O chá, os doces, as palavras, os nomes que pronunciamos juntos - é uma canção antiga que os nossos corações aprenderam depois da valsa constante de tardes, de dias e de uma vida toda vivida para isto - as coisas simples, as maiores e as mais puras.
Não há tempo melhor do que aquele que não queremos que acabe - sabe-nos bem a vida como um caminho que nunca foi solitário, que nunca foi da solidão.
Há bocados de luz na nossa vida - pessoas que nos aquecem e nos embalam o peito com o ritmo constante do que são e do que fazem por nós.
O tempo das gargalhadas, das tardes quentes em que se matavam galinhas e eu e o A. as queríamos ver sem cabeça, as tardes no jardim em flor depois de lanches abundantes e correrias de criança. O tempo em que as pessoas nos começavam a viciar nessa forma leve e inconsciente de cumprir hábitos, de repisar lugares, de não esquecer nomes nem gestos, de acariciar a memória e o poder consolador que esta transporta.
O poder não serve para afastar as pessoas - serve para as unir num qualquer desígnio comum, para as fazer sublimar a circunstância e caminhar juntas numa direcção idêntica.
Reencontro esse Deus bondoso na felicidade com que a minha avó se apressa a abraçar a Gó, na rapidez com que as duas percorrem a nossa história, lembrando-se, cada uma, sempre, das qualidades e gestos da outra.
O tempo na minha vida será sempre este - o da roupa branca estendida sobre um dia quente - um lençol de luz que esvoaça, enquanto corro:
"- Gó!"
Acabo por encontrá-la sempre
"- Estou aqui, menino, estou aqui."
E voltará sempre o tempo em que a minha família se abriu para acolher aquela que fez dela um lugar mais bonito para morar.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Ao longe, o verde.
A janela sobre o verde - esse corrimão de cheiros e lembranças onde se apoia a saudade que nos acompanha sempre. A janela da vossa juventude, os caminhos que nunca vos separaram.
As vossas casas - em pequenino o avô sentado à lareira com a mãe nesses Invernos de frio que estalava os ossos e adornava o tecto do mundo de uma luz pálida.
Tu envolta numa massa e bulício de feitios, génios e gestos que te fizeram inteira porque te sentiste desejada. Passo perto dos campos e ouço a espessura do silêncio e como a vida soa diferente ali.
Fui para te ver, avô - vejo-vos sempre melhor dessa moldura de felicidade que resgato nas pedras das fachadas, no musgo dos muros, no fumo das chaminés e nos rostos dessas pessoas que forjaram uma aliança com o trabalho e essa vida sem atenuações ou desculpas.
Sei que sentem a tua falta - falam-me de ti e não consigo deixar de sentir esse orgulho que vive em mim por te ter tido.
Espreito pela janela - essa em que imagino, avô, que a tua mãe te segurou nos braços, em que o mundo era da pedra das convicções, das palavras, dos compromissos, dessa ambição luminosa.
Tu e os teus irmãos que corriam pela casa, que já divergiam para sempre se saberem feitos do mesmo.
Sento-me no meio do verde - imagino que amor foi o teu pela avó - esse que te pôs nas linhas que lhe ofereceste o tom da promessa que deixaste realizada no peito dela e no nosso.
Apetece-me ficar aqui - mais perto de ti, mais perto dessa simplicidade feita de sorrisos, de gentileza e gente simples. Apetece-me ser como tu no meio deles e acabar como tu nos olhos deles.
Lembram-se de mim - dizem que corria para ti e para a avó (enquanto falam, ainda corro.) e que passava as tardes feliz enquanto observava os gestos, a gama ampla de cores que cabiam num fim de dia, enquanto ouvia a avó desfiar as vossas memórias como certezas de ferro que a agarram, ainda hoje, à vida.
Há um lugar onde esse fanatismo que tenho por vocês não morre - esse, onde ele começou assente na saudade que veio antes da ausência.
Sempre a saudade, antes de tudo, no nome de tudo, no início de tudo. Surpreende-se a grandeza do amor nesse absoluto desejo de prolongamento de umas coisas sobre as outras.
Imagino a avó quando passeava no descapotável do irmão mais velho, escutava os conselhos da mãe e amava o pai com um amor que chega para me contagiar.
Imagino, avô, o teu pai com ideias do tempo de hoje - apaixonado pelos ideais, pelos filhos, pela luta.
Imagino todas as coisas que soube pela vossa voz - vou ali para as ouvir melhor, outra vez, de perto.
Gosto da educação sem medo que tiveram, desse espaço de liberdade que vos ensaiou no peito desejos que só nascem da liberdade.
Imagino essas mesas repletas de vozes alegres, de gente que adora as palavras e ensaia o amor ao som delas, como uma música que tocasse num gira discos.
Passo nas ruas, nas casas, nos campos e sinto-me bem no ventre da memória - o frio do Inverno não tolhe essa sensação de que o nosso corpo e a nossa história nos serve, nos retrata, nos redime e nos enaltece.
Vou, avô, para te dizer do medo que trago ao saber que, como tu, a avó nunca me vai chegar, que já me falta antes das fintas da vida. Vou porque vivo a saber onde pertenço, a relembrar esse exemplo que foram para mim.
Sentado no meio do verde, o silêncio traz o teu nome no colo. Atrás dele, com o passo ligeiro de felicidade, correm duas crianças que trazem no rosto essa luz que anuncia a felicidade.
Vou para ver isso, para te dizer que a avó continua a ter alguém que se lembra de ti com ela.
São boas as nossas tardes - quase que parece que chegas para te juntar a nós de novo.
E, com isso, essa matéria espessa que é o amor bordado nas bordas das palavras, chamo por ti - e, de alguma maneira, a tua voz chega até mim.
Sempre.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Avó,
"-Meu pequenino queres vir lanchar comigo?" - a tua voz depois de ter medo que ela não me soasse dentro do ouvido, direita ao coração.
Cheguei e já tinhas mandado preparar a mesa - o chá que ainda soltava um bafo quente (como o teu nome e a tua lembrança) e os doces da quinta feitos "dos mimos", como dizes, da terra que é nossa.
Percorro o caminho até tua casa com o frio a arrepiar-me a pele e o passo apressado de quem corre a saber que o tempo não chega, que o amor é essa espécie de filme a meio que apanhamos - ao amor chega-se sempre atrasado.
Fico em silêncio a observar-te - sei que há um vício meu de te decorar as palavras, de gravar a tua voz para a fazer soar dentro de mim.
Tive contigo mais uma dessas conversas que nos tornaram dois bons amigos, dois cúmplices - a minha admiração por ti como a bandeira que ergo com a nossa lembrança - sempre a falar do avô que foi a maior medida do sonho, da ambição e o homem que nos amou a todos mais e melhor.
Digo-te do medo que trago comigo de te perder, do hábito que tenho de subir as escadas a correr e ouvir-te saudar-me com esse sorriso malandro que denuncia o quanto me desejas.
Agarras-me nas mãos - de pianista, como dizes, e pego nas tuas e sinto-lhes a suavidade, a ternura com que me recebem.
Falo-te do A., prometo-te que o trarei sempre comigo - os dois que sempre te procuraram mais, te souberam melhor e te cumprem como um ritual que nos dá o chão.
Penso em ti, pela manhã. Imagino que me acompanhas enquanto "nos faço maiores", como me pedes.
Falo-te do avô e da paixão dele pelos melros, desse tempo de Outono, das castanhas e dos ouriços que nos faziam passar tardes imensas no verde da vossa infância.
Falo-te e noto que me sorris feliz porque o não esqueço, porque me não esquece esse tempo que foi o mais feliz da minha vida.
Falo-te das falhas, das coisas menos boas e sorrio-te - aprendi a ter fé na raça, nessa capacidade de superação que nos põe mais juntos no fim de tudo.
Falas-me dos teus irmãos - és a última dessa casa de gente dotada dessa capacidade de antecipar o jogo do tempo e triunfar.
Penso em ti todos os dias - de como te ris quando te lanço provocações, de como nós fomos o sentido maior e último da tua vida - quiseste-nos e isso foi a maior razão para nos amares.
A casa em silêncio - apenas eu e tu. Dizer "a casa dos meus avós" e senti-la como minha.
Encho-.te o coração das minhas palavras - cravo na vida o que me traz preso em ti e quero que o saibas - é o meu obrigado.
Vi que contigo há toda uma medida que faz querer mais, ser mais e melhor.
O lanche corre - abro-te o coração porque o meu vacila se o teu treme - aprendi a agarrar o que te agarrou à vida. Falas-me da tua avó e de como a ias visitar, todos os dias, depois da escola.
Falo-te de ti e de como te quero ir ver, todos os dias, depois de tudo.
Discutimos política, discutimos as decisões que um dia eu, como tu, terei que tomar. E falas-me das lições que o teu pai te dava - a ti, a menina mais nova, a pequenina dos olhos azuis de mimo e de felicidade.
Contigo sinto-me o bisneto, o trineto - sinto-me em casa e recebido por essa gente de olhos azuis e cabelo muito louro com uma inteligência fina e audaz.
Vês muito de ti em mim e no A. - somos crentes do mesmo milagre de agradecer as pessoas que temos, de lhes apreciar a virtude e a história com verdade.
Somos bons contadores de histórias, todos nós, avó.
A minha história conta-se como a tua - orgulhosos por sermos frutos do mesmo chão, voltamos ao abrigo da memória que é a morada das coisas mais bonitas e que nunca morrem.
És a minha casa - o azul dos teus olhos, como uma promessa de manhãs frescas e luminosas.
Falo-te da mãe e do pai como me falas dos teus - somos como amigos que trocam o que a vida lhes deu, como cartas que se escrevem e se guardam, a salvo do tempo e do esquecimento.
O medo morre sob a felicidade que me nasce de te abraçar mais uma vez.
Noto que há pequenas contas nos teus olhos.
"- Gosto tanto de ti, avó."
A tua resposta (Eu também, muito) ouço-a mais do que nas palavras, na forma como prendes nos teus braços a dizer:
" - Vai tudo correr bem. Eu estou aqui."
E ainda bem.
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
10.11.
Os livros, o mar, a música.
Parabéns Mãe.
Há linhas nessas páginas amarelas dos passos do tempo que me denunciam onde se prendeu a tua atenção - páro, leio e descubro que nos encontramos nessa coincidência; que há um espaço onde me encontro contigo, em que me descubro, afinal, revelado nas mesmas linhas que leste há anos - antes de mim, das minhas mãos, da minha pele nascer da tua.
Descubro-te, sempre igual, através do eco do tempo - muitas linhas depois, todas as linhas depois e continuas uma heroína que livro nenhum conseguiu guardar.
Os livros guardam o teu cheiro como as divisões lá de casa, depois de ti. Dizem que voltas, que voltas sempre para te poder ouvir, ao longe, e gostar de saber-te lá.
Todos os livros, todas as palavras e descobri que nada me chega para te dizer - que há um espaço maior do que as linhas e os corpos que as leêm - e esse espaço é o nosso.
Os livros que foste trazendo para dentro das tardes de sol no Verão - o jardim sereno e cúmplice dessas confidências que as palavras te punham no sangue depois de lhes provares o sumo.
Procuro-te nos livros que leste como moradas que tiveste no caminho - sinto-te no eco das palavras que são como passos que deste para longe ou em direcção a ti mesma.
As lombadas suaves e polidas lembram-me o toque da tua mão, enquanto crescia e te contava, nessas horas de conversas longas no colo da areia, as linhas que fizeste ser possível escrever na minha vida.
Os livros e a curiosidade de te descobrir mais - apurar o traço do retrato inacabado que tenho de ti como, de resto, são os maiores amores. O prazer de iniciar cada capítulo da vida contigo - partir para chegar, sempre. Partir para te levar sempre presa no cimento do chão que piso, na luz de um dia de Outono que me lembra do musgo dos teus olhos.
Partir para te ver melhor - surpreender essas lembranças que se desenrolam como um caminho de ferro cheio de estações, onde desci contigo para aprender a renovar a crença no mundo, a ver a beleza serena do desconhecido, conhecer a surpresa e o abalo do encanto que nos nasce da cumplicidade que sentimos com pessoas e lugares.
As linhas que sublinhaste nas páginas são as coordenadas que sigo para contar a tua história, para confirmar tudo o que sempre me contaste.
Enquanto leio o que foi escrito de ti nas palavras dos outros, conheço a solidez da verdade com que te fizeste minha confidente e me mostraste a verdade sobre ti e o teu amor.
O Verão cheira a mar - os nossos Verões vão cheirar sempre a mar, ao descanso que volta aos corpos estendidos nas toalhas de praia. Fechar os olhos, como em criança, e gostar de ouvir as vozes dos avós e da família ao longe. Estão lá e isso chega.
A praia lembra-me sempre de ti - de como gostavas de nos ver correr na areia e te apaixonavas por essas gargalhadas fundas e livres das crianças felizes que fomos.
Os nossos Verões - dias como promessas à espera de se cumprirem sem nunca falharem - esse tempo inteiro e uno.
Lembro na areia os teus passos - sempre por perto, enquanto o silêncio nos servia e tinha a medida exacta do nosso corpo. Até hoje, as palavras servem para ser o eco de uma música mais funda que fomos compondo ao longo do tempo, os dois.
A música, os acordes que nos acompanham no balanço da viagem.
Ver o teu rosto no vidro do carro - espreitar-te o olhar, aprender o que ele diz, surpreender-te nesse instante e gostar de te ver na minha vida. Há um consolo que nunca veio só da luz que nos envolve o corpo - chama-se paz.
Ser testemunha dessa tua forma de amar - admirá-la, ver como contas as histórias da tua família, do meu pai, dessa vida que abraçaste sempre.
No dia dos teus anos falaste-me dos teus - se celebras a vida, é sempre para os recordar, para repisar a pedra que vos fez companheiros em definitivo.
No dia dos teus anos, escolheste os outros - provas-me que a tua vida são as tuas escolhas e a forma orgulhosa com que renovas a fé que puseste nelas.
Procuras-me os olhos na mesa - espero que se ouça o orgulho, que te devolvam os meus olhos, ao menos, uma parte do que deste.
Celebro-te presa na minha vida porque és o pilar que segura o céu - mostraste-me que a face verdadeira do amor se chama liberdade - que só há liberdade nessa escolha de querermos estar presos no que nos liberta, no que nos amplia e nos emudece.
O silêncio é uma valsa que se dança quando se vê no escuro - contigo, as salas soam ao familiar, ao percorrido, ao conquistado.
E só contigo me serve o silêncio, porque contigo nada me falta.
Em silêncio, desejo-te na minha vida. Baptizo o teu nome com essa admiração que se fez maior com os dias.
Da tua vida, do teu caminho, do teu rosto saiu a massa que te traz dentro e que sou eu. Moras em mim - sou um livro que tem o teu nome sublinhado com caneta permanente, um livro que se lê melhor com o som do mar e que fez do silêncio o altar onde pousa o teu nome que digo sempre sem precisar de o dizer.
Os livros, o mar, a música.
E tu, mãe. Sempre.
Parabéns Mãe.
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Você na TV.
Assistir a um programa de televisão dá, hoje em dia, vontade de voltar aos tempinhos do preto e branco simples, com vozes que pareciam envernizadas e pertenciam a esse género de locutores engomadinhos-guardiães-dos-bons costumes.
Começo por reiterar que nada tenho contra a cor que, aliás, existia no mundo muito antes de nos entrar pelos olhos dentro graças à caixinha mágica, hoje, da grossura de uma folha de papel.
O problema reside, justamente, no facto de a televisão actual se poder bem definir como "tebê-chiclete" - abunda toda a vasta gama de cores fluorescentes e apenas essas.
Veja-se e conclua-se, depois, pela justeza ou não da sentença que ditamos.
Tudo começou com essa criatura a que a literatura dos guiões chamou de Floribela - de repente, era super giro tratar de criançinhas, falar com árvores e acreditar que toda a gente aprecia essa modalidade desportiva chamada alpinismo social, desde que devidamente disfarçada, claro.
Que voltem os hippies, a boa música e os tarolos que o mundo sempre tinha outro colorido.
Portugal passou a apreciar esses melodramas plastificados dessas Lolitas pseudo-puras e perseguidas pelos azares da vida e do mundo.
O "amore" passou a levar um "e" no fim e, veja-se, ainda ninguém sonhava com essa evolução-natural-por-decreto do acordo ortográfico. Mas as pessoinhas viviam felizes, atafulhadas com os novos heróis do contemporâneo - a heroicidade dura pouco e as heroínas, coitadinhas, cedo largam os folhos e os pinchos histéricos e vão rápido quitar a prateleira e brincar aos médicos, mas a sério, desta vez.
As heroínas são umas brincalhonas que, ao contrário da Heidi, não pulam, mas cavalgam as montanhas deste mundo. E, talvez, se perceba agora que todos "deêm no cavalo.", pois então, com a Cicciolina a presidir às lides e dar o exemplo (e o resto também.)
Os Marcos de hoje em dia dão pontapés em directo - "falar pela frente" é, literalmente, chapar a verdade nas fronhas das pessoas.
As heroínas podem ser gordas - longe vão os tempos dessas belezas que só a cabeça dos homens pode imaginar existir. Mas, gorda que é gorda para ser famosa, tem de querer deixar de o ser. A isto se chama a auto-estima dos tempos da chiclete: "Aceitamos que sejas o que és, desde queiras deixar de o ser, tass?"
E, ligado o aparelho, podemos ver o desfile triste que é o aproveitamento pela cultura do plástico dos fantasmas que ajuda todos os dias a criar.
Vivemos no tempo em que a hipocrisia é, essa sim, obesa mórbida sem que ninguém se preocupe em mudar o disco e pôr a tocar a banda gástrica.
Depois chegou a casa dos segredos - com ela voltou aos ecrãs essa comadre casamenteira que alertava as pessoas para não se esquecerem da escova dos dentes. Ela, lá por casa, usava o piaçaba que era o mais indicado para pôr a brilhar essa preciosa reserva de marfim.
E está o espectáculo montado - desculpem-me o termo, mas decerto não haverá alminhas preversas que desconfiem da idoneidade do palavreado.
Assistimos a um desfile de um conjunto de criaturas saídas de uma linha de montagem (literalmente) da sociedade do plástico e da chiclete: temos ruído e brilho e o argumento da história mede-se, literalmente pelo tamanho do bícepe e da copa das meninas.
Nada contra pessoas saudáveis, naturalmente. É até giro ver as gordas que sofrem contra as saudáveis que tentam convencer meio mundo que sabem guardar um segredo melhor do que (não) guardaram outras coisas na vida.
E a Ordem dos Médicos agradece encarecidamente a descoberta de novas doenças - uma tal de "apeneira do sono". Isto faz avançar o país, não se duvide. Todos aprendemos com esse circo da estupidez em directo - o circo dessas abéculas, literalmente, mortinhas por armar a tenda.
A Sociedade de Geografia agradece as lições dadas ao "pobão" - os continentes estão, agora, "para cima" ou "para baixo". Percebe-se, de resto, a alusão. O melhor ensino é aquele que adequa as matérias à linguagem dos petizes. E, as meninas sabem que no mundo, às vezes, se fica por cima ou por baixo, que é giro mudar de posição e alargar (literalmente), os horizontes.
A sociedade chiclete está ao rubro na tebê - e a "frase mastiga e deita fora" é o slogan para esses directos a fazerem a apologia da carne mastigada e dos afectos transformados num diário de alcova foleiro e devidamente pago - o taxímetro está a contar, pois então...
Há uma apologia da espiritualidade e, quiçá, do respeito pelas doenças mentais - as pessoas ouvem "a Voz" e cumprem os seus ditames.
É lamentável ao que chegam os apelos que algumas alminhas sentem hoje - vivemos num tempo em que mais depressa se implanta silicone do que uma república ou outra ideia qualquer.
As pessoas alimentam-se da fantasia do proibido vivido pelos outros - é giro descobrir uma freira, uma mulher que dormiu com mil camionistas e uma girafa, um homem que se chama Tatiana quinta e sexta à noite. E as pessoas que assistem agarram-se a isso como à verdade oculta do mundo e da coisas.
É triste assistir às trocas e baldrocas das benfeitoras das manhãs - a Julinha ou o "Megafone" vs a Fatinha ou a "sou tanto melhor para os descamisados deste país, quanto mais me pagarem, coiso e tal."
A vida deixou de ser contada como vida e passou a ser um espectáculo - a encenação deve-se a algum lunático e o guião a um infeliz qualquer que se acha Nabokov porque as meninas que são personagens falam com uma vozinha melada e ar bovino.
O país adquire uma escala patética - as pessoas dizem isto nos autocarros:
" - Fuogo já viste aquela que não sabe qual é a capital de Espanha? E eu que pensava que era burra."
E, de repente, as pessoas adquirem uma ficção de auto-estima com o clicar no comando. Nalgum canal próximo, em vias de ser fechado, há peritos que falam dessas coisas que não interessam nem ao menino Jesus chamadas política ou economia ou cidadania.
Não interessa o que somos, onde estamos e para onde vamos se digerimos o jantar ao sabor das calinadas desse coliseu de hereges de plástico.
A caixinha faz magia, sim. Tornou-se no Xanax ou Lexotan dessas pessoas que se focam nos outros porque não se comprometem com uma ideia para si mesmos ou para o país.
A fábula tem uma moralidade oculta: há que crer em coisas que não se veêm - os ideais, as convicções, o diálogo moram longe desse mundo de princesas esbarradas e com mau português. Há mais nuances no mundo do que aquelas que se fazem nos cabelos, como há mais cores na paleta do que as "qualquer coisa-choque".
Às vezes, penso que devia voltar o tempo do preto e branco - do radicalismo no sentido de raíz ou pureza das coisas para o mundo avançar ao som da valsa que Hegel soube bem descrever.
Falta o furor de outrora - as terceiras vias, embora bem-intencionadas e meritórias, foram pretexto para o enfraquecimento dos discursos e das medidas.
As personagens deste contemporâneo são como o lixo - pode ser que, no final, se possam reutilizar. Até lá, são passadas de flash em flash como hologramas de um vedetismo fatela e ridículo.
Não há espaço para nada de imaterial nesta avalanche de ruído - o ridículo apadrinhou o sucesso e emprestou-lhe um sabor amargo de antropofagia social.
Há um país que definha nos sofás a almoçar a desgraça alheia - este é o apogeu da chamada fast food. Sorve-se a sopa de calhaus, em directo. Almoça-se barrigas de freira e janta-se miúdos de frango, com a tebê a falar dessa justiça em que ninguém acredita piamente. (desculpe-se o advérbio, para os que sabem o que isso é.)
Os predadores são as presas - e, nesta pocilga em directo, "os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros."
Soubessem as pessoas ler ou entender o que leêm e as coisas poderiam mudar.
Até lá, despeço-me - the show must go on.
E o "Grande Máno is watching."
domingo, 6 de novembro de 2011
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Gó.
Há sempre espaço na vida de uma pessoa para esses amores fáceis, para esse espaço que tem sempre a exacta medida que nos serve nas ausências e nos alimenta os sonhos.
Muita da minha vida se continua a apoiar na facilidade com que as palavras se conjugam e os corpos se compõem na presença das pessoas que vestiram o hábito e a convicção de gostar de mim.
A Gó provou-me que há uma grandeza que floresce nas almas e que faz do amor uma espécie de missão. Admiro-a, com cada lembrança que guardo dela, sempre, a fazer-me ampliar esse sentimento como uma narrativa nunca acabada.
Tem nas palavras uma doçura que nos desarma tão rápido como nos devolve essa ingenuidade que empresta ao amor uma tonalidade primaveril, fresca e luminosa.
Há, guardada dentro da armadura resistente do seu corpo, toda a epopeia da minha família. Hoje, enquanto lanchava a mesa farta que prepara para nós, como num ritual antigo de que não sabe desistir, as suas palavras escorregaram para esses tempos do meu avô por perto, para o nome da minha avó que pronuncia como se enfeitasse um altar com flores.
É sempre assim - somos para ela como uma causa, uma luta que não lhe é emprestada porque justamente ama os protagonistas com uma força que reclama sempre justiça.
Sinto, quando a vejo, uma leveza que significa um filtro no ruído do mundo, uma gratidão que é como um longo eco que me impele na sua direcção.
Há uma família que nos nomeia por coisas que o sangue não traz, mas que o granito dos gestos faz brotar bem fundo nele, de forma definitiva.
Fala-me dessa infância difícil - o corpo despido de confortos gratuitos muito cedo, o trabalho, os pais e as irmãs que se uniram todos para serem maiores. E, sempre, como um mar de luz onde navega habilmente, uma fé das mais bonitas que conheci.
Os seus valores respiram nas palavras, com essa serenidade que nasce dos pilares sólidos em que assentam. É um ser humano enorme - o seu olhar é fundo, de uma bondade que se parece a um abraço muito longo e repetido vezes sem conta.
Tem uma gargalhada malandra - ri-se ao lembrar-se de mim e do A. enquanto nos íamos viciando nessa vida inteira de os ter a todos por perto.
A minha avó, os meus pais, o meu avô e um correr de vida fácil, perene e quase definitivo.
Com ela conheci o carinho da gratidão - põe, na memória do meu avô, a saudade que tem desse tempo em que gostava de observar a família feliz na grande sala.
Suspeita que há em mim e no meu irmão, um fanatismo que é a forma imortal dos afectos - sente-se lembrada quando lhe provamos que, em nós, também se gravou aquela tarde, aquela soma de dias indistintamente bons, felizes e nossos.
Foi uma aliada, uma cúmplice nessa fórmula de sucesso que somos - sempre devota do que somos e fascinada por onde conseguimos chegar. Digo-lhe, porque o sinto desde sempre, que ela foi, em parte, o segredo que fez funcionar a engrenagem daquela casa.
Associo o mistério dos seus olhos ao facto de ser como uma guardiã desse tempo em que o mundo se preparava para mim.
Fala-me dela e dos meus avós como se, desde o início, nos esperassem, se preparassem para nós.
E agradece a Deus que a minha avó viva com essa alegria cravada no peito de se poder abrigar no nosso amor por ela e pelo que nos deixa.
Contagia-a o bem que cada um de nós sente e isso basta-lhe. Digo-lhe que, graças a ela, o bem se tornou um lugar mais bonito, se fez uma realidade sempre mais perfeita, mais inteira.
No seu dedo há uma aliança. Riu-se, hoje, ao relembrar-nos a meninice:
"- Oh Gó, mas afinal com quem casaste tu?"
"- Oh meninos, eu casei com Deus."
Hoje entendo que o seu casamento foi com tudo o que tocou com as suas mãos grandes e bondosas. Casou-se, com o peso dos sacramentos, com essa vida que agradece ter desaguado nas nossas. Eu, enquanto me agarra num abraço, agradeço estes bocados que me provam o quão fundo se podem gerar elos e laços de ferro.
O ferro que nos une é essa admiração que se ergueu acima da vontade, acima do tempo, acima de tudo.
Senti, hoje, como sempre, essa certeza de não querer ter nascido noutro sítio, ou desejar outra vida. E, à mesa do lanche, nesta tarde, pudemos ser essa orquestra que se afina pelo eco do que sabemos ser nas vidas uns dos outros.
Isso basta-me - estas horas e, o que me nasce delas, alarga-se aos dias seguintes e fixa-se como uma mancha de luz na memória do tempo.
Ser feliz, para mim, é, em boa parte, recordar. Recordar é abrir uma porta e ter gosto de voltar a entrar. E, para mim, voltar a entrar na casa dos meus avós, pela mão dos meus pais e encontrar a Gó, é repetir o que nunca bastou.
Despedimo-nos dela:
"- Toda a sorte do mundo, meus meninos!"
Em silêncio, enquanto saio, sei que, na minha vida e nestas tardes, isso é um desejo há muito realizado que a Gó nem se apercebe de ter tornado real, para nos fazer felizes.
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
sábado, 29 de outubro de 2011
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
raízes.
Há um apelo que nos desperta no peito quando voltamos às raízes - começa em nós esse fascínio do passado que se ouviu e se revê mentalmente com o cenário onde tudo aconteceu cravado no fundo dos olhos.
Ia muito lá em pequenino - levavam-me pela mão os meus avós que foram os maiores guardadores de sonhos que já conheci. Eram tardes do tamanho dos desejos que numa criança condizem com uma imortalidade que não se questiona.
Ouvia falar muito de quem morou nas casas, de quem percorria as ruas nos tempos em que os meus avós tinham a vida como um corredor de luz para percorrer.
Falavam-me de um país diferente, de um tempo diferente em que os abraços e as conquistas pareciam durar mais, sem que a voracidade do mundo as abalasse.
Tiveram uma infância feliz - e, mesmo já adultos, julgo que esse carinho pintado do verde dos campos e guardado pelos muros das quintas foi como uma espécie de abrigo.
Quando os ouvia fui apresentado a um mundo que dorme na sombra do tempo, para brilhar, ainda, nos corações deles.
Conheci as pessoas que foram o rosto do mundo para eles - contaram-me pequenos pormenores das vidas dos meus bisavós - cada palavra era um afago lançado contra as brumas do esquecimento e da distância.
Quem ama é sempre um bom contador de histórias, penso eu, enquanto me lembro de como sempre me abriram o coração para testemunhar esse tempo que não vivi.
Imaginava, maravilhado, essas casas grandes com essa massa sonora dos feitios que ecoam nas paredes como passos. Imaginava esse tempo de governantas gulosas e matreiras, de salas cheias com o tilintar dos copos porque se brindava sempre a alguma coisa ou a alguém.
Imagino a minha avó e o meu avô juntos no primeiro passeio como namorados - ando nas ruas onde isso começou e imagino a alegria que lhes enchia os corações de esperança que é o sentimento que nunca desaparece dos corações de quem amou verdadeiramente.
Há um orgulho que nunca se consegue dizer de ser poeira do chão desse caminho.
Visito o meu avô - imagino como gostaria de me ouvir as histórias dos meus dias, tal qual fazia quando era criança.
"- Então, pequeno, como foi o teu dia?"
Nasce sempre em mim essa vontade de lhe oferecer o meu tempo, para receber mais vida no sabor das coisas.
Imagino a minha avó apaixonada por essa ascensão que ela e o meu avô fizeram maior e sempre merecida.
Passeio-me no largo repleto de árvores que o Outono desnuda e revela - o mesmo chão, o mesmo cenário a testemunhar o passo da vida que ali parece afrouxar, no silêncio.
Penso no meu avô, que aparece sempre como se o chamasse da outra ponta de uma quinta, como quando íamos apanhar ouriços do castanheiro que algum trisavô plantou.
Fui acolhido no ventre quente da memória muito cedo - quase conheço quem nunca vi, quase me sentei à mesa de jantares que não me celebravam a mim, quase guardei no fundo do olhar esse baptismo renovado que são os afectos numa família.
Ouvi a meninice dos meus avós - agradeço aos que vieram antes de mim essa liberdade mais funda que tive. Sei que nasceu dos exemplos que se gravaram na memória dos que me acolheram.
Vou para perto do meu avô sempre que posso - guardo dentro de mim uma imagem perfeita desse homem tão maior do que eu.
E adivinho a saudade que vou ter da minha avó quando vejo o pôr do sol cair ao fundo da casa que a viu nascer.
Falo deles, escrevo-lhes em palavras uma sombra da luz que puseram no meu caminho.
E volto sempre - volto sempre ao lugar onde tudo começou para, de novo, ter esse tempo em que a memória era o fio que nos coseu a todos na alma a saudade como forma eterna de gratidão.
domingo, 23 de outubro de 2011
sábado, 22 de outubro de 2011
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
terça-feira, 18 de outubro de 2011
família.
Há pessoas que nos tornam a vida num voo mais alto. Há escalas aonde nos podem chegar os sentimentos, que podemos ficar toda uma vida gratos por termos vivido isso dentro de nós.
Identifico sempre a minha família com essa sensação de plenitude que trago comigo, quando me nomeiam como elo na sequência vasta do tempo que nos traz reféns uns dos outros pelo sangue e pelo amor.
Hoje de manhã, a minha avó estava feliz - a felicidade tingiu-lhe o olhar de uma luz parecida com o início de vida num lugar calmo, como devem, de resto, ser os afectos amarrados fundo dentro do que somos.
Fica feliz com a nossa presença pelas salas - talvez se lembre dessas duas crianças muito louras que, como diz, lhe douraram não a velhice, mas a vida toda porque, depois de nós, ela fez muito mais sentido.
Conversamos sobre o país, sobre essas pessoas e vidas que a minha avó nomeia como que a sentir o pulso de algo que lhe foi querido e agora esmorece.
Preocupa-se connosco - borda de amor o pano escondido do nosso futuro, desejando que seja assente no que lhe ensinaram ser o cimento do mundo e das relações. Fala do amor e do perdão e, enquanto isso, brinca nos dedos com uma cruz que o pai lhe deu quando jovem e que traz ao peito.
Os dedos são longos, as mãos muito delicadas - adivinho que falar da família para ela, é nomear quem mais a amou.
" - A morte do meu pai foi o maior desgosto da minha vida."
Olho-a nos olhos - há uma névoa que é o princípio das lágrimas que lhe jorram na meiguice das palavras, com que chama esse passado que a fez uma mulher maior.
Sei, enquanto me fala desse dia, que o seu corpo foi atingido por esse vazio que se rasga dentro de nós.
Há uma fotografia dos seus pais na credência, ali perto - um casal nascido no século XIX com um ar deslumbrante - ambos louros, os olhos muito azuis dos dois a denunciar a repetição com que o sangue nos baptiza o corpo, desde o seu início.
São um casal de uma elegância notável - reparo como a minha avó é um decalque perfeito das feições desse homem que foi para ela a bitola de todos os feitos.
" - Sei, meus pequeninos, que em vocês os dois vai estar sempre um bocadinho de mim e de todas estas pessoas que são a nossa família."
Isto sabe-me como um longo abraço, em que me cosem na pele a certeza de pertencer a um caminho.
Olho, de novo, o retrato - imagino o orgulho daqueles pais naquela filha - aquela que nunca os deixou esquecidos, que os traz amarrados naquilo que subsiste do que lhe deram.
Há, em mim, todos os bocadinhos da minha avó - cada gargalhada é como vida que semeio na aridez dos dias, cada minuto é uma pincelada com que aperfeiçoo a minha crença no que somos.
" - Tens que cá andar muito tempo, ouviste, minha malandra?" - digo-lhe eu.
Digo-lhe que, sem ela, a minha vida nunca mais será a mesma, que quero que veja os meus filhos e o que vier neles do que somos.
" - Avó, nunca me vou esquecer do que aprendemos contigo."
Dou-lhe um abraço muito apertado. Volto atrás e digo-lhe:
"-Gosto muito de ti." e esta frase ecoa dentro de mim, sempre.
"- Eu sei, filho. Eu também."
E, numa manhã que principia, deixo cravada no caminho do tempo, a razão da minha fé nas coisas e nas pessoas. E isso é, afinal de contas, o milagre que acontece quando descobrimos essa medida maior nos dias.
Olho a minha avó, enquanto se afasta do carro.
"- Não se esqueçam de me vir ver. Gosto da companhia de gente jovem.", diz-nos ela.
Enquanto lhe digo que não me esquecerei, compreendo que a minha avó é do tempo em que vive, não do tempo em que nasceu.
E, entender as ambições desta geração que ela deixa no mundo é, para ela, o saber que há outros capítulos que eu e o A. vamos acrescentar à nossa história.
É, no fundo, saber que, algures dentro de nós, haverá sempre uma imagem da nossa avó, que poremos no coração dos nossos filhos para, no fim de tudo, continuarem sempre essa promessa maior do que a vida que é o verdadeiro nome do amor.
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
terça-feira, 11 de outubro de 2011
tia Né.
Há em todas as famílias pessoas que corporizam traços que identificam as raças, que denunciam o eco que nos habita o sangue e viaja no correr da vida.
A minha tia avó era uma dessas figuras que nos acompanharam o imaginário de criança; que nos recebiam com os seus olhos azuis enormes e muito vivos, que continham o brilho dessa imensa inteligência e presença de espírito.
Nasceu numa casa onde o poder era uma presença antiga, que morava nos espaços entre as conversas por onde espreitava a memória, que os fez discípulos dessa missão de serem maiores.
Havia no seu génio essa determinação de se impor, de vincar no mundo o seu passo e o nosso nome tal como vira fazer as gerações que vieram antes dela.
Sempre fomos muito cúmplices - sei que o seu carinho por mim e pelo A. foi uma constante que lhe desenhava no rosto um sorriso sincero quando nos via chegar.
Lembro as tardes de férias - a família toda reunida e a sua gargalhada aberta com as malandrices que fazia à minha avó para a fazer esse abrigo na minha vida.
Tinha uma ironia fina que lhe punha no olhar essa intensidade do desafio; que lhe cosia no discurso uma clareza admirável.
O seu coração tinha favoritos como têm os corações que amam sinceramente - falava imenso com o meu pai sobre mim e o A. Deliciava-se quando nos via envolvidos nessa teia da memória que nos destinou a todos a mesma morada.
Tinha uma elegância soberba - numerosas sedas e uma espantosa colecção de jóias que a tornavam um símbolo numa sala. Representava o testemunho de que, pelo sangue, somos herdeiros dessa massa que nos criou do mesmo molde; que nos fez filhos do mesmo desejo de forjar um caminho por entre as dúvidas, as dores, a vida.
A sua maior herança foi a lembrança que guardo desse génio aceso, dessa atenção aos seus sucessores nos dias do amanhã.
Há dias em que lamento que as salas lá de casa não a tenham connosco. Era delicioso vê-la com a minha avó - as duas como dois bastiões dessa velha guarda de pessoas de carácter de ferro e de uma vontade maior do que as fraquezas do corpo.
Agradeço todos os dias a família que tive - a grandeza é uma coisa que identifico sempre pelo que me ficou de cada um deles.
A minha tia nunca teve medo do poder - na minha família herda-se mais do que um nome, uma legitimidade. E, por isso, nos lançamos todos em direcção às trevas do mundo, para de lá arrancar uma medida maior - essa medida do sonho e da ambição que deve ser a medida dos homens.
A minha avó fala-me da irmã - e, no seu rosto, vejo desenhar-se a saudade dessa companheira de toda uma vida, dessa aliada na conquista de uma outra escala, desse tempo de meninas que foi o delas, sob o olhar de uma família carinhosa e grande, num ninho quente e próspero.
Guardo embrulhada no orgulho, a saudade dessas pessoas que me ajudaram a conhecer o meu lugar nesta corrente que nos leva juntos até ao fim dos tempos.
Onde quer que esteja, acredito que encanta todos com essa inteligência fina, com essa encantadora capacidade de afirmar convicções, que herdou como as coordenadas que deviam ser as do mundo.
Escrevo sobre ela, sabendo, no entanto, que as palavras não seguram o encanto que morava no fundo daquele olhar, tão pouco chegam para descrever aquilo que se acumula dentro de nós depois de nos termos uns aos outros.
Todas as minhas vitórias e do A. a faziam feliz - sei que sorria por ela e pelos que nela ainda viviam. Celebrou connosco a vida e, com isso, tornou-a maior.
Recordo-a pela forma como nos olhava - e, na saudade que sinto de tudo o que vivemos, percebo que a vida nos guarda dentro uns dos outros para que, no fim, ninguém se perca.
Para que, no fim, tudo recomece e se reinvente e, no nome que um transporta, todos se sintam, afinal, vivos e chamados, sempre, a celebrar a vitória da vida sobre os reveses do mundo.
domingo, 9 de outubro de 2011
verão.
As tardes começam a ficar mais pequenas - o Verão começa a morrer no horizonte. Algures, ao fundo, o fio luminoso do mar.
E, de súbito, lembro esses Verões longos como uma brisa que não cessa numa noite quente e vem amaciar os sentidos.
Os Verões da minha infância eram de um ruído e de uma agitação luminosa - estavamos rodeados de pessoas, cuja companhia podíamos apreciar genuinamente. Todos os gestos eram fáceis e tínhamos para com a vida uma espécie de desdém que nasce em todos os corações cheios.
Lembro Lagos - a cidade em cujas ruas passeava com os meus pais e os meus avós. E lembro-me da forma como o meu avô me olhava enquanto eu vivia estendido no conforto daquela presença. Lembro a minha mãe e a minha avó que partilham essa paixão desmedida pelo mar.
O Sol despedia-se, ao fundo, num galope acelerado mas o brilho não deixava de existir para mim.
O A. sempre comigo - ambos a vivermos isso que sabemos ter sido uma benção.
Os Verões lembram-me sempre a agitação que é a forma suprema de felicidade quando somos pequenos e o corpo ainda não cedeu.
Temos imensas fotografias - ao fundo, a mesma cidade onde ficaram presos os passos que o meu avô deu comigo.
Quando o Verão acabava invadia-me sempre a nostalgia de perder esse tempo todo inteiro para ter as pessoas de quem sempre senti a falta.
Os dias de Verão da minha infância foram plenos - como se o tempo passasse pela paisagem, mas não pudesse quebrar os corpos ou atingir esse desejo absoluto de estarmos reunidos sob a luz de uma tarde que se derretia por fim.
O Verão era a negação do tempo - sempre a mesma face constante de dias longos como são os desejos de alguém que gosta para lá da resistência dos corpos.
Ainda hoje volto àquela praia - quando o sol se põe creio que todos sentimos que nos falta alguém, que há ausências que a própria paisagem parece denunciar também.
Os dias de Verão ensinaram-me o gosto de demorar no gostar - de partilhar essa indiferença pela presença do mundo. Todo o amor é uma forma de egoísmo, porque toda a partilha é uma forma de intimidade.
Hoje, enquanto o sol se pôs, lembrei-me desse areal imenso com um brilho de pérolas em pó. E, enquanto disfrutava do silêncio, ouvi chegar a mesma nostalgia da infância.
Há um Verão que desaba no horizonte - todos nos tentamos compor depois das ausências, procuramos vincar no sentido dos dias que vêm depois, a memória funda do que conseguimos ser.
A minha infância e os Verões de corpos leves e dias compridos ensinaram-me o prazer de contemplar o momento sem pedir mais nada ao mundo.
E, enquanto o sol caía no fim deste Verão, voltou-me essa vontade da meninice de desafiar o peso das coisas, de atenuar o peso das perdas.
E, sob a luz que caía, voltei a lembrar a família que a cor intensa do sol emoldurava nesses dias de infância.
A saudade empresta à luz uma cor que não se vê. Mas, no nosso íntimo, essa luz chega para nos fazer acreditar que há coisas que podem voltar a ser iluminadas. E continuadas no dia seguinte.
Quando somos crianças vamos sempre a tempo, existe essa crença na continuidade das coisas porque ainda não sabemos que o tempo as pode fazer derrapar.
E, enquanto a tarde caía, apeteceu-me ser criança e continuar a viver o fim da tarde com o meu avô por perto e a minha família.
Sei exactamente que se o meu avô voltasse, a sua forma de nos amar a todos seria sempre a mesma.
E, às vezes, essa certeza basta. Porque a maior prova das coisas que existiram é o que fica delas quando já não as temos.
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
casa.
As casas grandes são o palco onde o mistério paira sempre sobre as coisas. As paredes são como alicerces de um ventre onde se forma e refaz a vida no correr do tempo.
Cresci numa casa dessas - cada quarto com as histórias presas como retratos que só nós conhecemos, cada espaço povoado do som doce dos afectos, cada corredor testemunha dos passos que demos em direcção uns aos outros.
A casa dos meus avós foi a fortaleza da minha infância - as tardes eram longas, sempre rodeadas das pessoas que me ensinaram o que era o amor. Sei que há coisas de mim guardadas em cada uma daquelas paredes, ruídos dos meus passos felizes quando corria para abraçar o meu avô que foi o maior homem que já conheci.
Aquela casa conta-nos como família - esses almoços com a minha avó a sorrir-me da ponta da mesa e a admirar a minha audácia e do A.
Lembro-me de encontrar a minha mãe deliciada com o meu avô que a amou como a uma filha.
A Gó como a sentinela que sempre nos protegeu e nos deu um mimo intenso como uma tarde de calor na serra.
Há algo de mim que ficou sempre ali - que mora na cascata de felicidade que nasceu da conjugação daquelas pessoas que tocaram a minha vida.
Admiro a elegância da minha avó que me recebe sempre com essa intensidade que denuncia o amor que sente por mim como uma espécie de fanatismo que a alimenta.
Conta-me que história têm as jóias que usa - o carinho do meu bisavô que lhe dourou a meninice, o amor que o meu avô lhe teve.
Na minha vida, as casas e as pessoas servem para homenagear aqueles que dão significado ao que somos. E a casa dos meus avós guarda a versão mais inteira, mais verdadeira daquilo que sou.
Entro na casa num dia em que a minha avó não está - percorro todo aquele imenso espaço, vejo as orquídeas como uma longa massa de cor e verde, alinhada sob o sol da tarde.
As salas muito quietas, os corredores mergulhados na sombra. Ninguém.
Vejo que a minha avó deixou a carteira esquecida e aberta.
E quando reparo, vejo que tem uma fotografia minha e do A.
Conto ao meu pai que me diz que a minha avó não a quis num porta-retrato para que "eles andem comigo para todo o lado."
E, em silêncio, lembro-me quando encontrei na secretária do meu avô, depois da sua morte, presos por um elástico, todos e cada um dos postais que a minha mãe nos ensinou a gostar de escrever.
A letra infantil foi mudando, tornou-se num espelho do que nos foi acontecendo.
Leio os postais - sempre as mesmas palavras - "saudades, avô."
"Temos saudades tuas, querida avó."
Há uma frase que se destaca, num postal meu:
"Quem me dera que estivessem aqui"
Percebo que certos desejos nos acompanham toda uma vida. São como certos lugares aonde chegamos para dizer:
"Estou em casa. Sou daqui."
A minha família ensinou-me essa espécie de vício que pode ser o amor.
E quando penso naquela casa, consigo lembrar-me desse rapaz que um dia teve algo que o mundo pôde atingir, mas que a valsa do tempo não consegue, afinal, levar da verdadeira morada do amor - essa que é, afinal, o nosso peito.
sábado, 1 de outubro de 2011
"O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará"
A cidade era um mar de luz. Nas ruas, cães pachorrentos erguiam a cabeça levemente como esperando a brisa que lhes aliviasse o peso do calor espesso.
Encontrei a igreja flutuando no silêncio que é o lugar de onde nascem todos os nomes.
As paredes são grossas - tudo me lembra o que permanece, tudo me lembra esse abrigo que todos procuramos ter uns nos outros.
Há gente com a tristeza gravada no fundo dos olhos suplicantes - não ausculto que dores são as delas, que tormentas lhes dominam o pensamento. Acredito que todos nos recolhemos sob a sombra calmante da esperança - da esperança de que aquilo que vamos pondo na soma dos dias prevaleça sobre os desaires da vida.
No silêncio, lembro nomes cujo som ainda ecoa nas paredes dentro de mim - é para eles que as minhas palavras vão.
Penso nesse país que se desmorona - nas pessoas que são minhas amigas e que ouço pela noite dentro, e peço por eles. E na conduta deles - sempre persistindo sobre a vida, encontro Deus.
Lembro a minha infância - Deus era um cúmplice nesse desabafo do amor que é uma infância feliz. E, dentro de mim, renasce a mesma criança com essa absoluta vontade de amar como sempre lhe mostraram ser possível.
"O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará.", lembro-me eu.
E, de facto, enquanto me lembro daqueles de quem gosto, percebo que Deus sempre se manifesta na minha vida.
O Amor é como uma memória que não se apaga, que não precisa de corpos como prova da sua consistência. Do silêncio da vida, dessas horas mais difíceis do caminho, vale a pena arrancarmos esse principiar do amor e da entrega.
No silêncio, agradeço. Agradeço essa vontade de continuar em direcção ao outro, em direcção ao que podemos arrancar do silêncio para firmar sobre a areia da vida, compromissos de ferro.
Na saudade que sinto - como um hino que não cessa dentro de mim - vejo que há sentimentos que não condizem com a condição de homem, com a condição de um corpo e de um tempo.
E sei, hoje, que do amor que me deram, nasceu essa esperança constante de haver lugares onde temos de estar, pessoas que temos que amparar para nos segurarmos a nós na esteira da vida.
E Deus manifesta-se nessa maravilha da descoberta de noites que não são solitárias, de vidas que não são monólogos porque cosemos do outro lado do nosso caminho nomes que guardam a verdade sobre nós.
Sei que há dores que me atingem, contradições que nos dilaceram.
Mas, com a alma toda entregue nessa vontade de ajudar, percebo que o amor é um resgate que vale a pena pagar.
Uma velhinha sorri-me no banco do lado - despeço-me dela quando saio.
"-Deus o abençoe, menino."
Sorrio-lhe - saio para o mundo com esse consolo no peito de saber que, no meio da encruzilhada da vida, sempre encontramos alguém com quem aprendemos que, amando, nada nos pode faltar.
E, sempre que isso acontece, deixamos como prova desse amor a esperança que nos inunda o olhar porque, afinal, somos capazes de voar mais alto.
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
avô,
A tarde caía sobre o verde - ao fundo, os ruídos do bulício dos homens e dos corpos sob um céu aberto em fogo. As vindimas chegaram - a terra enche-se de passos e mãos laboriosas e de gente que me habituei a ver seguir a tua voz.
Os seus corpos estão mais fracos - são como pequenos vestígios da força que tinham na minha infância, mas os seus olhares dirigem-nos a mesma ternura.
Somos bocados da história das vidas deles - guardam no fundo do olhar o respeito que queriam dar-te a ti, mas que quem recebe sou eu.
Antes de me verem chegar, ouço-os falar de ti - há um carinho na voz que revela a saudade de terem alguém que lhes aliviasse as dores da fome e da miséria.
Foste o amparo daquela gente toda - só hoje vou sabendo o que tu nunca me contaste, mas que te pôs cativo no coração de tanta gente. Devem-te tanto.
Sempre suspeitei dessa tua lisura e atenção ao outro - desse teu confiar no carácter como sismógrafo da consciência.
"- Menino, no tempo do seu avozinho é que era. Os meninos sempre ao redor deles."
E lembro-me de mim e do A. nas ribanceiras nessas tardes em que nada ia acabar, de ti e da avó nessas picardias que vos faziam mais cúmplices até ao fim.
Esta semana faltaram-me coisas demais - fujo para o verde para ouvir esses ecos de um tempo em que o mundo era como uma sucessão de encontros felizes.
E, enquanto os empregados falam de ti e de nós maravilhados contigo, são como testemunhas das coisas que ainda vivem e viverão em mim.
Soube-me bem que me pusessem as mãos nas costas - agradeciam-me que o teu ocaso tivesse aliados nesse desafio de firmar um compromisso com a terra e as pessoas.
"- Como o tempo passa, menino. Mas a sua avozinha é um exemplo. Não há quem a derrube."
Falam-me na minha avó e, no silêncio, quero que o que dizem se torne a mais absoluta das verdades; se imponha sobre o meu medo como um dogma de ferro.
Para eles, eu e o A. somos a continuação dessa gente que lhes compôs a vida, que foi o chão dos seus passos humildes e agradecidos.
No meio daquela gente, longe do ruído estéril da pompa, senti-me inteiro - esse R. que fazia os teus olhos sorrirem de orgulho.
Esta semana voltou-me a recordação do adeus que o teu corpo me impôs. Mas, ali, havia essa verdade que aquelas pessoas me diziam, me confirmavam ter existido - nós, frutos desse mesmo sangue que nos fez um do outro.
Quase acreditei que chegarias e dirias, de novo:
"- Já viram como estão os meus netos? São um orgulho."
Fazes-me falta, avô.
A tarde despedia-se com calma - os dias, no entanto, mais apressados e com o sono mais pesado, duram já menos.
Mas, no meio daquelas pessoas que ainda resistem sobre o abalo do tempo, tudo pôde ser esse mar de tranquilidade que o teu nome fez nascer no meu peito.
Todas as perdas me lembram da solidão.
E a solidão lembra-me de ti.
E desse dia em que ela ficou mais funda.
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
avó,
A noite caía - no silêncio boiava uma tristeza que se infiltrava nos ossos com o frio que chegava.
Olho-te da porta da igreja - não me vês ainda e admiro a tua força, essa tua vontade de não deixares um bocado de ti perdido no mundo, mesmo no fim.
Há um apelo que me acorda no peito - os teus olhos azuis como uma longa manhã de primavera, esse teu corpo frágil que esconde uma força que verga a dor, que verga o vazio.
Finalmente os nossos olhos encontram-se e o teu rosto acende-se, de imediato.
Corro para ti - sei que nos habituamos a chamar um pelo outro pela certeza de que partilhamos um lugar só nosso.
Ficamos lado a lado - eu com vontade de te poupar daquela despedida que me doía por me lembrar que as coisas acabam.
Durante a tarde lembrei-me de ti e do avô quando nos viam brincar naquele verde imenso que tinha um calor que sabia a paz.
Ouço palavras lançadas sobre a noite que principia - e pergunto-me se algum dia posso ver-nos o fim: o fim daquilo que foi a minha vida até hoje - essa família com um chão de granito que o mundo não pode abalar.
Faltam-me as palavras e os pensamentos ficam imersos nesse impulso que tenho de te amparar - não me quero perder, não quero deixar de ser a pessoa que ajudaste a fazer mais funda e que vive mais feliz por te saber nalgum lado a desejar-me coisas sem a medida dos homens e da vida.
Fomos cúmplices nesse crime de fazer da vida uma viagem sem destino - ambos nos queremos, no fim, perto um do outro.
E rezo, em silêncio, com uma vontade que me morde para que fiques.
Há uma multidão que nos rodeia - a tua mão procura a minha e prende-se nela com força. Os maiores amores são clandestinos, vivem desses gestos que o mundo não vê.
Sei que me escolhes, que te abrigas nessa promessa de eternidade com que aprendi a dizer a palavra avó - sabes que quero que me procures para que da noite da vida, sempre nasça a luz.
Há um sopro ácido dentro do meu peito que me dói - o toque da tua pele e os teus olhos fixados em mim, apagam o mundo.
De súbito, nada mais existe - há esse momento em que a vida triunfa sobre a morte. Vingo-me dela com a força da minha mão na tua, numa noite infeliz.
Agradeço-te tudo o que torna a tua lembrança um manto de luz e acredito que, no meio da noite escura em que ambos perdemos, haverá alguma justiça em desejar que nos deixem ficar presos um no outro pelos laços que o sangue e a cumplicidade forjaram esses anos todos.
A noite chega, enfim, manchada das lágrimas que choras dentro do peito e mais ninguém ouve.
Eu ouço-tas - e com esse estar contigo num momento em que verde não se parece com paz, digo-te que, apenas nos perderemos um do outro, quando um dia de mim se perder a minha vontade.
Quando, um dia, eu me perder de mim.
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